sexta-feira, 21 de agosto de 2009

24 - Operação Moelas (VI)



Parménides contemplava ainda, com mágoa, a garrafa de tinto que jazia quebrada no chão, quando Bauer lhe pegou pelo braço e literalmente o arrastou procurando um veículo que lhe permitisse não perder o rasto do atirador. Providencialmente, a solução surgiu estacionada junto ao quiosque do parque, um Aixam branco, também conhecido por “mata-velhos” ou “papa-reformas”, mas que para Bauer era o veículo ideal, potente porém discreto, audaz todavia seguro. Um vidro quebrado e o assunto resolveu-se.

O sol descia no horizonte quando o Aixam ultrapassou as fronteiras do bairro, levando no seu interior um Parménides angustiado com o pensamento em sua mãe que, àquela hora, tricotava sem parar uma nova camisola de lã para o seu filho, aguardando, sem noção do tempo, pela garrafa de tinto que não iria chegar a tempo do coelho à caçador. A angústia do jovem herói era adensada pelo facto de estar cada vez mais longe do seu habitat, aumentando o risco de se perder, ao contrário de Paulo Portas quando abandona a liderança do CDS-PP, que acaba sempre por encontrar o caminho de volta para o Largo do Caldas.
Subitamente, o Aixam estacou numa esquina. 500m mais à frente, a Piaggio estacionou junto de uns grandes armazéns. O sujeito olhou em redor, certificando-se que não era seguido e apressou-se a entrar no edifício por uma porta lateral. O telemóvel de Bauer tocou e ele pô-lo em alta-voz.

- Jack? - era a voz do inspector Agostinho – surgiu aqui uma coisa estranha na análise de ADN da baba do caracol, que revelou características de uma espécie em concreto, Gros-Gris, ou Helix Aspersa Maxima . Estes caracóis são importados de Marrocos e distribuídos no nosso país em exclusivo pela Caracolex, empresa registada em nome de Amin Al Moufada.
- Então, ouve-me isto, - respondeu Bauer – estamos nos armazéns da Caracolex, em perseguição de um suspeito que se escondeu no edifício e eu vou ter de lá entrar. Consegues arranjar-me a planta do edifício?
- Sim, - respondeu o inspector após uns instantes de silêncio - já a estou a ver no meu monitor.
- Manda-me para o meu i-phone!
- Não dá, Jack. Aqui na tasca só há ligação dial-up e o Silva paga a Internet ao minuto. O ficheiro tem mais de 50 Mb, isto leva uma eternidade...espera! Tive uma ideia, vou imprimir isto tudo e envio-te por estafeta. Até já.
Bauer olhou para o relógio. Não havia tempo a perder e a sua missão era recuperar a receita das moelas, custasse o que custasse, e enquanto não a concluísse com sucesso, corpo e mente não descansariam um segundo.
- Cobre-me! - disse Bauer para Parménides, enquanto corria para fora do carro, curvado, em direcção aos armazéns da Caracolex. Parménides achou estranho que Jack já estivesse com frio, mas como gostava de cumprir o que lhe pediam, principiou logo a tirar o seu casaco de lã merino para o emprestar a Bauer, pelo que estranhou que ele tivesse saído do carro para ir correr.
- Deve estar mesmo com frio! - pensou Parménides, que decidiu ir atrás do agente.

Os dois chegaram à porta lateral do armazém, Bauer olhou em volta e entrou sorrateiramente, logo seguido por Parménides Juvenal. À esquerda, havia uma escada de metal, da qual Bauer galgou os degraus dois a dois, alcançando um patamar que lhe dava a visão geral do espaço abaixo – filas e filas de caixotes perfurados, cobertos de rede, esperavam o momento da expedição. Aqui e ali, empilhadoras circulavam transportando volumes de um lado para outro.

* * *

Tendo acabado o seu último novelo de lã verde-alface, a mãe de Parménides olhou para o relógio e inquietou-se com o tardar da sua encomenda para o jantar. Esperou que o filho não tivesse tido outro azar como da vez em que ficara com a braguilha trilhada na boca de incêndio (uma longa história). Pelo sim, pelo não, resolveu ligar-lhe para o telemóvel.

* * *

Bauer reparou num grupo de indivíduos que conversavam numa zona mais isolada do complexo. Entre eles, reconheceu o atirador furtivo. Voltou-se para Parménides colocando o indicador sobre os lábios e caminhou pela galeria metálica por forma a ficar mais perto do grupo e ouvir o que diziam.
- الجامعة العربية Moufada انتظار معرفة انباء عن ذويهم على وجه الاستعجال ، وعدم السماح لمزيد من التأخير في الخطة . (* em português: Al Moufada aguardar notícias com urgência e não admitir mais atrasos no plano.)
- Saihd للراحة. وباختصار ، والمخدرات ، والبنادق ، والملاهي ، لن يكون أكثر من الفول السوداني لهذه الأعمال. (* Saihd poder descansar. Em breve, drogas, armas, casinos não serão mais que amendoins perante este negócio.)

Subitamente, Jack ouviu atrás de si uma melodia vagamente familiar.
“Abram alas para o Noddy! Noddy! Com a buzina a tocar...”
Virou-se e viu Parménides atrapalhado com o seu telemóvel, que tocava e vibrava intensamente, surgindo no visor, com intermitências, a palavra “mãe”. Antes que se pudessem aperceber, estavam ambos cercados, manietados e, após uma súbita dor de cabeça, começaram a notar que o mundo à sua volta ficava cada vez mais negro, até que as luzes se apagaram por completo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Mãe Natureza tem destas coisas


(Acabadinhos de serem "colhidos" do quintal do Silva! Lembra-me aquele "trava línguas" que aprendi em pequeno, quando me pediam para dizer, repetidas vezes e muito mas muito depressa, a frase: "Fui ao mar colhi cordões, vim do mar cordões colhi")

domingo, 2 de agosto de 2009

O que não lhe consegui esconder

Aprecio o ritual, como se o estivesse a ver pela primeira vez. Cada pormenor desperta em mim a curiosidade, uma ponte na imaginação infantil. Aquele pincel igualmente grande e pequeno, diferente dos que uso nas pinturas, e que costumo noutras alturas retirar da prateleira para brincar, neste momento encontra-se, uma vez mais, energicamente a criar uma espuma branca imensa no seu rosto. De seguida um objecto em forma de T passa com movimentos delicados e precisos, fazendo descobrir a pele por baixo da espuma.

Numa das idas à casa de banho reparo naquele objecto em forma de T, analiso-o tentando entender a sua função. Existe alguma sujidade retida na pequena ranhura superior, e num acto impensado deslizo o dedo indicador para a tentar retirar. Sinto dor, e de imediato surge uma gota enorme de sangue, que rapidamente é seguida de outra, e outra e a sequência torna-se rápida e interminável. Deixo cair o objecto no lavatório ensanguentado e fujo daquele local, daquela situação. Saio a correr para a sala e sinto a minha mãe vir atrás. “O que aconteceu?”, pergunta, enquanto procuro esconder a mão nas costas, sentindo o dedo quente, inchado, a latejar. “Nada!” respondo, tentando disfarçar o meu desconforto. Reparo nas manchas de pingos pelo chão e no olhar da minha mãe na minha direcção, mas sem ser para mim: para o que estaria no chão perto de mim.

Sinto-me aliviada pela sua presença, por ter percebido o que aconteceu. Porque ela tem sempre solução para o que desconheço.

sábado, 1 de agosto de 2009

O que nunca lhe contei

Dois pequenos buracos na parede despertam-me a curiosidade. O que estará do outro lado? Procuro em volta e descubro um pequeno ferro. A tentação é forte demais para conseguir resistir. Mesmo à medida! Exploro, faço girar o pequeno ferro dentro de um dos orifícios da parede, mas nada de novo. Tento então retirar o ferro mas este não cede. O pânico começa a gerar-se, recordo que a minha mãe está mesmo na sala ao lado, entretida com os seus arranjos de costura, penso que fiz algo de muito errado ao brincar com aqueles orifícios na parede, e num último impulso de medo puxo com toda a força o ferro encravado. Sinto um esticão, um formigar intenso a percorrer-me o corpo e desato num choro inconsolável, não sei se pelo susto do que acabo de sentir, se pelo medo da reprimenda da minha mãe. Ela num sobressalto corre para mim, abraça-me e procura saber porque choro. Coloca-me no seu colo, procurando que me acalme e lhe conte o que aconteceu. Eu não conto. Limito-me a soluçar e a esperar que ela não me castigue. Ela não insiste em querer saber o que aconteceu, apenas em que eu finalmente me acalme e pare de chorar. Consola-se por terminar mais uma choradeira sem motivo, eu consolo-me por ter escapado da reprimenda, e ainda ter tido direito a tanto mimo…