quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

… Énda épi niú iar!

Grande PJ, grande PJ, quem sou eu à tua beira? … Um estúpido passarinho, que se esborracha numa das turbinas do teu cérebro supersónico? … Um camelo sem bossas? … Uma varejeira sem asas? … Um homo neanderthalensis, mas sem a parte do sapiens? Obrigado pela tua prestação ao longo deste ano e que tenhas um grande 2010 … com muita coisa quentinha para te “aconchegar”, que não propriamente e apenas collants e leite.

Obrigado também aos restantes co-tasqueiros, pois mais não seja ajudaram a colorir os dias de muitas pessoas.

À Frente. O que me trás por cá, é esta questão de todos desejarmos um novo ano cheio de saúde, paz, amor e prosperidade, esquecendo-nos muitas das vezes de olhar para trás e ver/aprender com o que se passou.

Pois o que se passou não foi propriamente um “annus horribilis”, mas uma coisa ali por perto, a que eu atrevo-me a chamar de “annus rascus”, a saber:

  • Susan Boyle, 48 anos, até então uma ilustre desconhecida, celebriza-se num concurso de música lá nas terras de sua majestade, mas acaba por ficar à rasca na final, a qual perde para um desses grupos de gajos quaisquer, cuja boa figura só serve para alimentar certas indústrias rafeiras;

  • Em contrapartida, e com apenas mais duas primaveras, finou-se essa figura mundial da musica pop, de seu nome Michael Jackson (Miguel, o filho de Jack), tendo-se apurado na autópsia que o seu corpinho danone já estaria à rasca com tanta absorção de medicamentos;

  • Por falar em brancos, nos EUA chega à presidência um afro-americano, o qual ainda arrebata, como brinde-surpresa a abrir mais daqui a uns tempos, um belo dum prémio Nobel da Paz. Escusado será dizer que essas eleições deixaram muita gente à rasca;

  • Entretanto, e para que a tremedeira não desse lugar a um cataclismo, o Xôr Presidente lá fez um arranjinho em Copenhaga com mais dois ou três artistas. Pois sim senhor – “As emissões de dióxido de carbono fazem mal ao planeta, mas se este não estiver bem que se ponha, até porque quem manda aqui somos nós e não se fala mais nisso, ai a porra já, vamos mas é acabar isto, que eu estou à rasquinha para ir ao WC!”;

  • Porra, porra, foi aquela história do BPN e BPP, principalmente para certos depositantes, os quais, segundo os próprios coitadinhos, estarão à rasca para sobreviver sequer;

  • Ao contrário daqueles, houve um individuo - aquele que ganha dinheiro a dar pontapés numa bola e que ao mesmo tempo ainda consegue fazer outra habilidade, que é a de falar com uma batata na boca - o qual embolsou a módica quantia de 94 milhões de euros, imagine-se, só porque trocou de camisola! Como se sentirão no meio disto tudo aquelas Senhoras de etnia cigana, as quais vêem as clientes mudar de camisola e que no fim acabam por nada comprar? À rasca, pois claro;

  • O que eu propunha às ciganitas (com todo o respeito), era que trocassem de negócio e se dedicassem à venda de sucata. Isso sim, isso é que está a dar. Bem sei que, caso o negócio não seja bem feito, há sempre a possibilidade de perdermos a galinha dos ovos de ouro e ficarmos novamente à rasca, restando-nos pegar numa vara e ir para as feiras pedir, de preferência com cara de vítima;

  • Quem nunca precisará de pedir, dinheiro, claro está, é o escritor hispano-português José Saramago, o qual, mesmo à rasquinha presume-se, ainda conseguiu escrever “Caim” (coin, em inglês), livro em que basicamente desanca na única religião que ele ainda teme ser mais forte que a por si (mal)criada;

  • Malcriada, segundo as más-línguas, seria a D.ª Manuela Moura Guedes para com os políticos e outros que tais, a qual viu o seu jornal de sexta suspenso e assim também se viu forçada a entrar de baixa, isto porque, segundo as mesmas más-línguas, andaria à rasca de dinheiro e, já que não se pode lixar o Estado de outra forma, pelo menos tira-se-lhe umas patacas;

  • Pelo meio tivemos eleições internas e foi o que se viu – Numas ou noutras, todos eles andaram à rasca. Só não viu quem é cego;

  • Quem nunca mais tornará a ver (o que, a continuar assim o estado das coisas, nem faz grande diferença), são aqueles seis desgraçados que tiveram o azar de ir parar ao Santa Maria. Já não lhes bastava o martírio de irem para os centros de saúde de madrugada, isto para terem uma vaga à rasca? Sinceramente!;

  • Bem sei que nem tudo são tristezas e ainda bem que o Astérix e o Obélix continuam a brindar-nos com as mil e uma maneiras de afiambrar romanos, isto há 50 anos. Não se tratasse de duas figuras míticas e o Berlusconi andaria à rasca, pois já se sabe que levar com um menir nos cornos deve ser bem mais doloroso que apanhar com uma miniatura de um edifício qualquer nas beiças;

  • À rasca, à rasca, andamos nós durante o ano com esta história da gripe A, efeméride que transformou um simples espirro num acto proibido de se efectuar em público, o que não foi mau para todos, nomeadamente os que sofrem de incontinência “flatal”, coisa nada admissível (e assumida) em público desde há muitos anos, muito menos se tal situação ocorresse num elevador;

  • Claro que, como em todos os posts que fui publicando ao longo do ano, também este haveria de acabar a cheirar mal e por isso volto ao FUTEBOL. Ora, não é que a nossa selecção lá se apurou para o mundial à rasca!? Eu sei, já não podemos com tanto pontapé na bola, mas estejam descansados, pois ou é de mim, ou tenho o pressentimento (um feeling, portanto) que depressa eles vêm de malas aviadas.

Muito mais haveria para relatar, mas fico-me por aqui (aleluia), não sem antes dizer-te, ó 2009, que até gostava de te deixar um “porreiro pá”. No entanto, e como te portaste mal, lamento só poder oferecer-te isto:

Bom ano para todos!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

ui uíxu a mérri crishmas!


Olá, o meu nome é Parménides Juvenal e moro aqui no bairro.
Bem sei que não devia andar na rua a esta hora, mas vim aqui à tasca num instante comprar aguardente para a minha mãe, que está a fazer uns sonhos de Natal, por isso não posso demorar porque senão ela fica preocupada.
Parecendo que não, se eu demorar muito, a massa leveda sem aguardente e depois os sonhos já não sabem ao mesmo.

Só tenho boas recordações do Natal. Aliás, um dos momentos altos da minha vida foi quando fui escolhido para a peça de Natal da escola, e calhou-me logo o importante papel duma pedra, na qual se sentava o pai do menino Jesus. Por acaso tive sorte, porque esse papel estava destinado a um banco de madeira, mas que à última hora não pôde participar por ter partido uma das pernas.

Noutro Natal, recebi uns dos melhores elogios que ouvi até hoje. Chamava-se Susana, tinha sardas e eu estava completamente apaixonado pela forma carinhosa como ela gritava "Sai da frente, inútil", enquanto subíamos as escadas para a sala de aulas. Recordo-me como se fosse há 20 anos, quando ela olhou para mim, eu na aula de ginástica, com colants verdes (eram mais quentinhos e o pavilhão era um bocado frio) e diz-me “Para pinheiro de Natal só te faltam as bolas”...
Senti-me levitar de paixão como uma bola de sabão!
Isto pode parecer um pensamento muito erudito mas reconheço que tenho sido influenciado pelos livros do Lobo Antunes que leio (mas escondidos entre as páginas da Playboy, não vá o meu pai apanhar-me a ler coisas que fazem mal aos olhos).

Bom, mas fico por aqui, espero não ter incomodado, vou andando, desejo um feliz Natal a todos os senhores e senhoras e também àqueles que, segundo o meu pai diz, pegam de empurrão.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Um sonoro silêncio

O compositor austríaco Anton Webern pertenceu ao conjunto de autores que, no início do século XX, encaminhou a música na direcção da atonalidade, isto é, a ausência de harmonia baseada nos acordes tradicionais.

Alex Ross, no seu livro O Resto é Ruído, descreve de forma muito interessante um trecho da obra Seis Peças, opus 6 de Webern, composta em 1909-10. Aqui fica a descrição e um vídeo, no qual a passagem a que Ross se refere tem início aos 3:50 e demora cerca de 4 minutos.

A meio da sequência há uma procissão fúnebre que começa com uma agourenta tranquilidade, com um ressoar de tambores, de gongos e de sinos. Diversos grupos de instrumentos, entre os quais predominam os trombones, gemem acordes de cariz inerte e contido. Um clarinete toca uma melodia aguda, lamuriante e envolvente, em mi bemol. Uma flauta alto responde com timbres baixos e roucos. Uma trompa e um trompete produzem em surdina outros fragmentos líricos e acordes subterrâneos. É então que os trombones soltam um grito e os sopros e metais os seguem. A peça termina com uma sequência esmagadora de acordes de nove e dez notas, após as quais a percussão inicia o seu crescendo que culmina com um rugido que liquida qualquer tom. E assim começou a idade do ruído. (...)

As obras de Webern estão suspensas num limbo entre o ruído da vida e o silêncio da morte. A facilidade com que um se funde no outro significa que das suas obras emana uma percepção filosófica clara e profunda. O crescendo na marcha fúnebre da Opus 6 está entre os fenómenos musicais de maior volume sonoro da história, mas ainda mais sonoro é o silêncio que se lhe segue e que fere os ouvidos como um trovão.



Alex Ross
O Resto é Ruído - À Escuta do Século XX
Casa das Letras, 2009

Anton Webern
(1883-1945)
Seis Peças, opus 6
Orquesta Joven de la Sinfonica de Galicia (OJSG)
David Ethève (maestro)

domingo, 13 de dezembro de 2009

Carbonara de curgetes

Tenho sérias dúvidas sobre qual a melhor grafia para esta variedade de abóbora de nome afrancesado. Corgete, curgete ou courgete? Opto pela proposta do dicionário da Priberam. Em contrapartida, não tenho dúvida alguma sobre a enorme qualidade gastronómica que este fruto imprime a algumas receitas.

É o caso desta carbonara (hum... isto parece ser italiano) que adaptei depois de a pescar num programa de televisão de Jamie Oliver (este é inglês - eis a Tasca Global!). Simples, fácil, rápida e deliciosa.


Ingredientes (para 4 pessoas)

2 curgetes
150 g de bacon
300 g de massa tipo penne
2 ovos
1 pacote de natas (200 ml)
queijo parmesão ralado
alho
tomilho
azeite
sal
pimenta


Receita

Lavar e cortar as curgetes ao meio e depois em quartos. Retirar a parte central que tem as sementes. Cortar depois cada quarto de curgete em tiras diagonais (de tamanho semelhante ao da massa penne).

Num recipiente, juntar duas gemas de ovo, as natas e o queijo parmesão ralado (cerca de 3 colheres de sopa).

Cozer a massa em água temperada com sal. Escorrer e reservar cerca de meio decilitro da água da cozedura.

Num tacho largo ou numa frigideira alta, fritar o bacon numa colher de azeite. Acrescentar o alho picado. Juntar as tiras de curgete. Temperar com tomilho e pimenta. Deixar as curgetes fritar 5 a 10 minutos, de forma a ficarem cozidas mas um pouco rijas.

Juntar a massa e mexer, envolvendo bem todos os ingredientes. Retirar do fogão e juntar a água da cozedura da massa e a mistura dos ovos, natas e queijo. Mexer bem até a mistura ficar cremosa.


sábado, 12 de dezembro de 2009

Claimeitegueite

No momento em que decorre a Conferência sobre Alterações Climáticas em Copenhaga, é altura para lembrar o caso Climategate. Em Novembro passado, pessoas desconhecidas acederam a um computador do CRU (Climatic Reserch Unit), em Norwich, Inglaterra, tendo obtido e divulgado e-mails confidenciais que mostram que alguns "cientistas" têm deturpado os dados tornados públicos sobre o aquecimento global, exagerando o fenómeno.

Este caso junta-se assim aos argumentos que vão no sentido de que o aquecimento global é uma grande treta ou, a haver algum aquecimento, ele não deriva da actividade poluente dos seres humanos.

Já sabemos que há coisas que não são o que são. Por isso, devemos cultivar o cepticismo. Ser céptico permite ver as coisas para além daquilo que elas parecem ser. Pelo menos algumas. É por sermos cépticos que "o mundo pula e avança". Mas fica uma sempiterna dúvida. Onde pode parar o cepticismo? Neste caso concreto, devemos acreditar que os e-mails comprometedores e a fraude científica existem mesmo?

A controvérsia está, mais do que nunca, acesa. O que pode muito bem ser uma das causas do aquecimento global.

A dralien day

Para mim, os melhores jogos de computador são aqueles em que o jogador não tem que usar a destreza motora, mas, em vez disso, tem de ficar a olhar para o ecrã a tentar resolver situações enigmáticas, fazendo uso de capacidades como o sentido de observação, a intuição, a inteligência, a imaginação, o sentido de humor e o nonsense.

A Dralien Day é uma deliciosa miniatura em palataforma flash jogável na Internet. Em apenas meia dúzia de níveis muito simples, combina o melhor do género com uma sessão de um inofensivo shoot'em up.

Para não aborrecer muito os mais impacientes, até tem ajuda com a solução de cada nível. Mas não a usem. Resolver o enigma sem ajuda é muito mais emocionante.


domingo, 22 de novembro de 2009

24 - Operação Moelas (X) finalmente...o fim.



“Cozem-se as moelas sem sal durante 30 minutos. Depois de cozidas cortam-se aos poucos e levam-se num tacho ao lume juntamente com a cebola, o alho, o azeite e as folhas de loureiro. Quando a cebola e o alho começarem a alourar, juntar a cerveja e deixar ferver. Em seguida deita-se o molho de tomate, na quantidade que preferir (depende da maneira como quiser o sabor do molho das moelas, a saber a tomate ou a saber mais a cerveja). Junta-se o vinho branco ou o whisky, cerca de 2 ou três colheres de sopa e o sal q.b. e deixa-se apurar o molho. Juntar ao molho 2 colheres de sopa de farinha maisena, dissolvidas em água, de modo a este engrossar”...

* * *

Podendo parecer repetitivo, ou falta de imaginação do autor, a verdade é que pela segunda vez naquele dia, dir-se-ía que o mundo havia parado a sua rotação e a vida interrompido o seu curso, à excepção dos rápidos movimentos de Jack Bauer que provavam a razão de Einstein dizer que espaço e tempo eram relativos. No tempo em que Cátia Vanessa levou a ler a receita (além dos balanços da viatura, não podemos esquecer a tremura das suas mãos perante a responsabilidade), Bauer conduziu a carrinha pelo parque de campismo adentro, conseguindo despistar os seus perseguidores e, ao mesmo tempo, deitar a mão a um fogão Camping gás, uma garrafa de cerveja, outra de vinho branco, aos temperos necessários às moelas e a um soutien de uma rapariga gorda que tomava banho atrás de uma roulotte.

Todo esse material, à excepção do soutien, foi utilizado por Cátia Vanessa, coadjuvada por Parménides Juvenal, que fizeram da traseira da carrinha do talho um laboratório de criação artística, pois de arte se trata quando se fala das moelas à Silva, pitéu gastronómico referenciado em várias publicações da especialidade, nomeadamente, a Gazeta Gastronómica de Curral de Moinas e o suplemento culinário da Dica da Semana.

Bauer guinou à esquerda, entrando na Rua dos Almeidas, a qual penetrava no coração do bairro e ía desembocar directamente em frente à Tasca do Silva. Consultou o seu cronómetro de pulso, uma bela peça de relojoaria de design italiano, precisão suíça e comprado na loja do sr Ping Xixi. Faltavam poucos minutos para o meio dia. A tensão crescia. Cátia Vanessa apurava o tempero das moelas. Os segundos iam correndo. Pelas costas do Silva corriam gotas de suor frio. Quase se podia ouvir o bater dos corações. Tensão no ar. Uma multidão aguardava que fosse servido o petisco após o discurso de Aníbal Silva. Mais um minuto passara e parecia cada vez mais perto o primeiro incumprimento eleitoral do candidato, que dissera claramente à imprensa, que ao meio dia estaria servido o ex-líbris da tasca e do bairro. E foi nesse momento que...

...a mãe de Parménides atravessou a rua, procurando pelo filho que não via há quase 24 horas e pela garrafa de tinto que, infelizmente, com ele desaparecera.
Uma fracção de segundo. Foi tudo quanto Bauer teve de antecedência para torcer violentamente o volante, levando a carrinha frigorífica a equilibrar-se momentâneamente em duas rodas antes de se desviar de encontro a um poste de iluminação, por sinal já com a lâmpada fundida. A força centrífuga criada pela curva, adicionada à energia cinética libertada pelo choque, numa proporção que este autor não consegue descrever, mas que qualquer físico poderá calcular com precisão, fez abrir as portas traseiras do veículo, projectando Parménides pelo ar como se de um frisbee se tratasse.

E foi assim, que Parménides Juvenal, num voo elíptico, passou no espaço aéreo por cima de sua mãe, agarrado a um tacho de deliciosas moelas prontas a comer, entrou pela porta da tasca, aterrando precisamente por baixo da comprida mesa de cerimónia, junto aos pés do Silva, o qual tratou de pegar no tacho e o colocar no centro da mesa, marcavam os relógios 11 horas, 59 minutos e 59 segundos.
- Aqui tem o que pretende – disse o dono da Tasca para Aníbal Silva.
O candidato franziu o sobrolho,na dúvida se ele se referia às moelas ou ao tacho...em sentido figurado.



Nessa noite, Parménides Juvenal pôde finalmente gozar o conforto do seu lar, sentado aos pés do maple onde sua mãe fazia renda, enquanto ambos viam a novela das 10, embora o jovem sentisse já os seus olhitos sucumbindo ao sono, quer por efeitos do cansaço quer por resultado do leite morninho que bebericava.
- Ai, meu filho, não imaginas as ralações que passei por tua causa...tentei ligar-te para o telemóvel e não respondeste...
- Ó mãe, desculpa, devo tê-lo perdido nalgum lado!
- Vou fazer-te uma bolsinha em malha para trazeres o telefone sempre contigo à cintura!
- Não sei se é boa ideia trazer o telemóvel à cintura, mãe, preocupa-me o que dizem por aí sobre as radiações...
- E tens medo do quê, filho?! De ficar estéril? O teu pai também o era e não foi por isso que tu deixaste de nascer...

sábado, 31 de outubro de 2009

Realidades

I.
Brinco só no meu quarto, alheia aos brinquedos, embrenhada na imaginação, que me leva a um mundo que me parece tão real, e tão mais interessante que este onde vivo. A minha mãe vem ter comigo e diz-me que vão ao café, ela e o meu pai. Parece-me indiferente esta indicação, mas assim que oiço o fechar da porta uma sensação de satisfação invade-me. Só, nesta casa com tantos recantos e objectos escondidos que nunca vi. Dirijo-me então aos locais da casa geralmente “proibidos” a brincadeiras, e exploro, cada gaveta, cada armário, por baixo da cama, em cima da cómoda, tudo o que me é normalmente vedado tocar, está agora à minha disposição. Fechada em casa, totalmente livre, dona do momento.

II.
Desde que vi aquele olhar vivo e brilhante dirigido a mim ao abrir aquela caixa, nunca mais tive sossego. Aterrorizava-me saber que naquele armário, na casa onde me encontrava, onde tinha de comer e dormir todos os dias, se encontrava aquilo, aquele olhar, aquele olho de uma vivacidade que parecia querer hipnotizar-me de tal forma que me fitava. Tinha de me livrar deste terror que se instalara em mim desde o dia daquela descoberta. Assim que me vi de novo sozinha em casa, e sem pensar, dirigi-me ao armário e retirei do fundo do mesmo aquela pequena caixa de metal com fotos antigas e documentos amarelados, retirando dentro dela, com a ajuda de um lenço e sem olhar, o motivo do meu medo, e deitei de imediato no lixo. Sensação de alívio. Finalmente livre daquele olhar que me atormentava.

III.
O meu pai sempre gostou de falar dos seus antepassados. De gente que nunca conheci, e da qual me tenta mostrar orgulhoso em esquema quem é quem, que parentesco tem de quem, nomes, locais, e muita coisa à qual tento mostrar-me interessada, mas à qual não consigo encontrar entusiasmo para apreciar. No meio da conversa oiço algo de alguém que tinha um olho de vidro. Um pânico interior gera-se em mim, como se algo gelado me percorresse o corpo por dentro à medida que tomo consciência da situação. Apercebo-me do meu acto impensado. Naquela caixa que continha recordações de antepassados, havia um pequeno objecto que tinha pertencido a alguém, que alguém pretendeu guardar, que tinha um valor muito especial para alguém. Aquele objecto cujo realismo me tinha assustado, por isso mesmo, por ser sua intenção ser o mais real possível, era uma peça guardada por motivos que agora me eram claros. Peça que… desapareceu!

24 - Operação Moelas (IX)...sim, está quase...



Moça roliça, porém resoluta, Cátia Vanessa decidiu que não seria um qualquer mal-encarado que a impediria de voltar à liberdade na companhia do seu Bigodes, pelo que, surpreendentemente até para si própria, pregou uma valente lambada no indivíduo, semelhante às que fornecia aos clientes do Silva quando se faziam esquisitos para pagar a despesa, suficiente para que o marroquino, por um lado, perdesse 2 dentes e uma lente de contacto, mas por outro, ganhasse um hematoma tamanho familiar no olho esquerdo e uma contusão ao bater com a cabeça num bidon, que o colocou fora do caminho.

Os dois fugitivos escaparam dali o mais depressa que puderam e Cátia deu a mão a Parménides para que passassem o umbral da saída. Juvenal corou, mas até hoje não foi possível apurar se isso se deveu à experiência carnal ou à excitação da corrida. Já no exterior, olhando em ambos os sentidos, não viram Jack em lado nenhum.
De repente, surgindo a grande velocidade, uma carrinha frigorífica branca, com letras vermelhas na carroçaria a dizer “Talhos Dona Rosa-A Chicha Mais Saborosa”, tentou dobrar a esquina sob o protesto dos pneus, que guincharam no pavimento até o veículo se imobilizar à frente dos dois. A janela do condutor desceu e dentro da cabine surgiu a cabeça de Bauer, que gritou:

- Subam! Não temos tempo a perder!
Passageiros acomodados, de novo chiaram os pneus quando Bauer pisou o acelerador, a caminho da tasca.
- Onde é que arranjou este transporte? - perguntou Cátia Vanessa, segurando o seu gato enquanto deslizava no banco corrido, após mais uma curva brusca.
- Quando estava no armazém, vi passar o reboque da polícia com ela atrelada, pelos vistos estava mal estacionada, e percebi que estava aqui a nossa hipótese de salvar o Silva.
- Deixe-me ver se percebi, a polícia autuou um veículo, ía a rebocá-lo e você foi lá pedi-lo emprestado?!
- Disse-lhes que era um assunto de segurança nacional...e pedi por favor.
- E eles entregaram o veículo? - perguntou Parménides a caminho do enjoo.
Bauer olhou pelo retrovisor e vislumbrou dois grupos de sirenes que, lá ao fundo, ganhavam terreno na perseguição à carrinha frigorífica.
- ...uhn, não exactamente!

Calcou de novo o acelerador e atravessou em linha recta um cruzamento com a destreza de um condutor indiano na hora de ponta em Bombaim, a mesma destreza que os outros condutores não tiveram, pois ouviram-se várias travagens prolongadas que acabavam com o som de metal a bater.
- Ouçam,- disse Bauer conferindo novamente o retrovisor e verificando que já meia divisão policial seguia no seu encalço – esta carrinha tem a solução. Lá atrás temos vários quilos de moelas, temos a receita, portanto, podemos prepará-las para que cheguem à tasca precisamente ao meio dia, quando começar o evento!
- Preparar as moelas onde? Aqui dentro, não? - interrogou Cátia Vanessa.
- Sim. Não se preocupem, eu tenho um plano.
- Eu também tenho um plano... poupança-reforma, mas só lhe posso mexer aos 65 anos e quero lá chegar viva! É a ideia mais estapafúrdia que já ouvi na minha vida, e mesmo que fosse possível, como as iremos fazer? Pois se a receita é secreta, não é suposto que a possamos ler...
- Ouça, não sei se o Parménides sabe cozinhar ou não, mas eu não sei, portanto o futuro da tasca está nas suas mãos. E não se esqueça do seu papel nisto tudo...ninguém tem de saber, entende?...Eu só quero sossego, posso esquecer-me de contar ao Silva se tiver, digamos, alguém que me lave os cortinados uma vez por ano. O que me diz?

Vanessa meditou e no seu íntimo soube que era a oportunidade ideal para se redimir do apoio que tinha dado ao plano de Al Mufada.
- Ok, eu faço as moelas – assumiu, não sem sentir um nó na garganta, enquanto pegava no papel da receita das moelas à Silva, com o cuidado devido a uma relíquia bizantina.
Em breve, pela primeira vez, alguém fora da linhagem Silva desvendaria um segredo com anos de história, de mistério, de suor, lágrimas e dores de barriga, algo que muitos tinham tentado alcançar sem conseguir. O nervosismo e a responsabilidade fizeram-lhe tremer as mãos, quando Cátia começou a ler o papel:
- Ingredientes...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Tasqueiros e bastonários


A propósito disto aqui, lembrei-me desta história:

Uma empresa entendeu que estava na hora de mudar o estilo de gestão e contratou um novo Director. Este veio determinado a agitar as bases e tornar a empresa mais produtiva.

No primeiro dia, acompanhado dos principais directores e coordenadores, fez uma inspecção a toda a empresa. No armazém todos estavam a trabalhar, mas um rapaz novo estava encostado à parede com as mãos nos bolsos.

Vendo aí uma boa oportunidade de demonstrar a sua nova filosofia de trabalho, o novo director geral perguntou ao rapaz:

- Quanto é que ganha por mês?

- Trezentos euros, porquê? - respondeu o rapaz sem saber do que se tratava.

O administrador tirou os EUR 300,00 do bolso e deu ao rapaz, dizendo:

- Aqui está o seu salário deste mês. Agora desapareça e não volte nunca mais! Esta empresa não tem lugar para si!

O rapaz guardou o dinheiro e saiu conforme as ordens recebidas.

O administrador, então, encheu o peito e, orgulhoso da atitude que serviria de exemplo, pergunta ao grupo de operários:

- Algum de vocês sabe o que este sujeito fazia aqui?

- Sim Senhor - responderam admirados os operários - Veio entregar uma pizza...



MORAL DA HISTÓRIA:

"Há pessoas que desejam tanto mandar, que se esquecem de pensar"

domingo, 11 de outubro de 2009

24 - Operação Moelas (VIII)


- Então – concluiu Bauer após ouvir as explicações de Cátia Vanessa – quer dizer que isto é uma questão de concorrência, não tem ligações políticas?
- Claro que tem ligações políticas, sr Bauer! - disse um indivíduo alto e moreno, saindo da penumbra, juntamente com dois capangas armados – Quem é que pensa que vai financiar toda a campanha de reeleição de Aníbal Silva? Não se iluda, sr Bauer, tudo na vida é política e o encerramento da tasca do Silva é apenas um meio para atingirmos os nossos fins, assim também glorificando Alá. Palavra de Saihd.
- Mas isso não é justo! - argumentou Parménides.
- Cala-te infiel! Justo é o elástico das cuecas da tua mãe impura.
Parménides pensou que o indivíduo estivesse a falar com alguém fora do seu campo de visão, pois ele não se chamava infiel e sua mãe era uma senhora de bem que usava cintas adelgaçantes e não cuecas apertadas.

Bauer tentou soltar uma das mãos e, ao tentar, deu com o bolso traseiro de Parménides, onde repousava um inocente corta-unhas, que nas mãos treinadas do ex-agente, em breve se transformaria numa horrível e eficiente máquina de morte. Jogando tudo na psicologia, segundo a escola de pensamento de José Mourinho, Bauer tentou ganhar tempo:
- E o plano do Sheik Al Mufada é?...
Orgulhoso por poder mostrar a sua superioridade aos ocidentais, Saihd sorriu com desdém:
- Digamos que o Sheik está seguro que o presidente Silva vai ganhar e que também está seguro que, depois da reunião intermediada pelo primo do presidente, este não se irá opôr a dar um parecer positivo à construção de um shopping nos terrenos, actualmente considerados zona verde, do jardim Arqº Carrapatoso, a partir do qual estenderá uma rede de franchising de restaurantes de caracóis, permitindo branquear outras receitas...
Inebriado pelo seu próprio relato, Saihd não reparou que Bauer tinha sacado o corta-unhas de Parménides. Também não reparou que a lâmina do instrumento tinha dilacerado a corda que lhe prendia os pulsos. Nem reparou que Bauer tinha desembainhado a lima das unhas e contraído os músculos, num momento de concentração que antecedeu a tempestade.
Quando reparou, foi tarde.

Foram não mais de 30 segundos, onde parecia que o mundo tinha parado a sua rotação e a vida interrompido o seu curso, à excepção dos rápidos movimentos de Jack Bauer que provavam a razão de Einstein dizer que espaço e tempo eram relativos. Em menos tempo que leva o Ronaldo a trocar de namorada, Jack jogou-se para a frente, rebolando sobre si mesmo e retirando as amarras que seguravam as suas pernas à cadeira. Com o balanço, jogou o assento contra a cara do rufia à sua frente, o qual caiu inanimado de encontro a um tanque de decantação de caracóis, o qual tombou directamente no pavimento vários litros de baba dos animais.
Impulsionando-se como uma mola, Bauer jogou o seu peso para a frente e deslizou sobre a baba como de fizesse body-board, apanhando desprevenido o segundo vigilante, ao cortar-lhe a veia jugular com a lima do corta-unhas ao mesmo tempo que caía sobre Saihd, com o seu punho esquerdo a estabelecer contacto directo com o maxilar direito do marroquino.

Após colocar o seu adversário nos braços de Morfeu, correu a libertar Cátia Vanessa, que fez o mesmo a Parménides.
- Vamos embora, - disse Jack, aproximando-se da janela e inspeccionando o exterior – Sahid tinha a receita no bolso do casaco, já a recuperei e não tarda nada teremos mais companhia.
- Eu não me vou embora sem o meu Bigodes! Ele está ali dentro. - disse a decidida Cátia, apontando para um pequeno gabinete do outro lado do armazém.
Nesse instante, algo no exterior prendeu a atenção de Bauer, e ele soube que teria de agir rápido.
- Ok. Vocês vão buscar o gato, mas despachem-se. Encontra-mo-nos lá fora. - Dito isto, correu para o exterior do armazém.

Cátia e Parménides, que não via tanta acção desde que mudara a última vez a água ao aquário do seu peixinho vermelho, correram entre bidons e caixas para não despertar a atenção dos trabalhadores que se viam ao fundo do armazém. A jovem entrou de rompante no gabinete escuro com cheiro a oregãos e com as paredes cobertas de calendários que fariam corar Parménides, se ele não estivesse ocupado a desembaciar os óculos.
Reavido o felino, que dormitava num sofá velho, os dois saíram do gabinete em passo acelerado, que foi prontamente interrompido por um monhé de ar ameaçador, que lhes cortou a passagem.

domingo, 4 de outubro de 2009

Nature Boy

Nature Boy é uma canção escrita pelo compositor George Aberle, também conhecido por "eden ahbez", e popularizada por Nat King Cole em 1948. Desde então tem conhecido inúmeras versões, quase todas elas marcadas pela sua mensagem singela e inocente: a maior coisa que podemos aprender é apenas amar e ser amado. Eis um magnífico exemplo de como as coisas simples resultam em música.

There was a boy
A very strange enchanted boy
They say he wandered very far, very far
Over land and sea
A little shy and sad of eye
But very wise was he

And then one day
A magic day he passed my way
And while we spoke of many things
Fools and kings
This he said to me
"The greatest thing you'll ever learn
Is just to love and be loved in return"



Nature Boy, Ella Fitzgerald e Joe Pass:



Nature Boy, Karolina Pasierbska:



Nature Boy, James Last e Chuck Findley (trompete):






sábado, 26 de setembro de 2009

Temp(l)o de reflexão

A Tasca do Silva, sempre atenta às necessidades dos seus estimados clientes, decidiu inaugurar um espaço adequado ao dia de hoje, onde o freguês poderá, de uma forma calma e ponderada, meditar mais aprofundadamente sobre a escolha que deverá fazer amanhã.





Sendo este estabelecimento modesto e de dimensões exíguas, não se admirem caso o dito espaço tenha odores menos agradáveis, uma vez que também se destina à clientela que o usa exclusivamente para a defecação. A estes últimos, a gerência desde já agradece o favor de não se enganarem no rolo.

domingo, 13 de setembro de 2009

24 - Operação Moelas (VII)



O sol raiava já pelas altas janelas do armazém quando Parménides acordou, despertando com um travo amargo na boca semelhante àquele que lhe deixava o seu mata-bicho habitual carregado de testosterona – uma malga de Farinha 33.
Deu por si sentado numa cadeira, com as pernas amarradas aos pés desta e as mãos atadas ao encosto, sentindo um volume atrás de si.
- Sr Jack? Sr Jack, está aí?
- O Jack ainda está desmaiado, Parménides.
O jovem teve um aperto no coração, quando percebeu que estava a ouvir a voz de Cátia Vanessa!


* * *

- Meu S. Gregório, isto é terrível, uma tragédia, um drama, - o Silva andava de um lado para o outro do balcão, com as mãos na cabeça – um cataclismo, um drama... ah, não, esta já disse... eu não posso ficar de braços cruzados, eu não posso assistir ao fim da tasca sem nada tentar...
- Porque não experimenta fazer as moelas sem receita? - avançou o inspector Agostinho.
- Porque esta receita, inspector, é mais do que uma receita, é uma herança de família, tem passado de pai para filho desde que foi inventada pelo meu pai, possui fórmulas de delicado equilíbrio de ingredientes demasiado elaboradas para eu as saber de cor.

* * *
- Sim, fui eu que telefonei aos marroquinos para os avisar...- Parménides ouvia a explicação de Cátia Vanessa, igualmente amarrada a uma cadeira junto deles, e recusava-se a acreditar que um dos seus ídolos, a mulher que fazia as divinas pataniscas que o Silva vendia para fora, fosse capaz de tamanha malvadeza para com a tasca - ...tive de o fazer, para proteger aqueles que amo...
- Que história é essa? - perguntou Bauer, entretanto desperto.
- A verdade é que ninguém imagina os lucros fabulosos que o comércio de caracóis traz a quem domina o negócio. Os animais são comprados a € 0,80 o quilo e importados às toneladas para o mercado português, onde chegam às mesas dos cafés a um preço 16 vezes superior. O Sheik Al Mufada controla uma poderosa organização, sr Bauer, tem olhos e ouvidos em toda a parte e domina o mercado com mão de ferro, não admitindo que negócios como o da tasca do Silva lhe façam concorrência nos petiscos com uma receita de moelas.
- Mas o sr. Silva é tão simpático, coitado! - gemeu Parménides.
- Depois da organização ter raptado o Bigodes, o meu gato persa... – disse Cátia com lágrimas nos olhos – Eles ameaçaram capar o meu pobre bichano e não tive outra opção...
- Mesmo correndo o risco de levar o Silva à falência? - perguntou Bauer.
- Eu não podia fazer nada... e não pude suportar o sofrimento do Bigodes. Eu pensava que, no fim, mesmo que eu fosse despedida, poderia ganhar dinheiro alugando o Bigodes para inseminação, ele tem pedigree... Afinal, enganei-me, e agora querem também ver-se livres de mim! Estou tão arrependida...
* * *

Na sede do PITA:
- Tô? Silva? Tá tudo a andar, né? Claro, nem é preciso perguntar, o dr Aníbal faz questão de te cumprimentar em público para as fotos, já viste a publicidade, âhn?! O quê? Se podes servir peixinhos da horta? Mas que raio de conversa é essa, ó Silva?! Isso não pode ser, pah! As moelas têm uma imagem de força política que não se pode desperdiçar!... Agora cá peixinhos da horta... além do nome ser um bocado panilhas, isso remete para horta, não diz nada aos nossos eleitores, aqui ninguém tem hortas. Vamos lá a atinar, ó Silva, que isto não pode falhar, sabes que o dr. Silva quase que ia sendo agredido na última manifestação do 1.º de Maio... quer dizer, não foi bem agredido, mas ainda lhe vieram as lágrimas aos olhos... sim, tá bem, só chorou de um olho... bom, a bem dizer foi apenas um cisco...

domingo, 6 de setembro de 2009

Cardápio eleitoral da Tasca do Silva

Vale a pena ler e analisar com atenção os programas eleitorais dos partidos políticos. Eles são fonte inesgotável de ensinamentos que podemos utilizar em diversas situações, elevando substancialmente o nível do discurso e das práticas. Aqui na Tasca, por exemplo, os programas eleitorais estão a ser usados para renovar o atendimento. E esta acção começa já a dar frutos que nos parecem muito interessantes.

Eis um exemplo gravado em áudio na passada sexta-feira, quando entrou o primeiro cliente do dia, eram onze horas e cinquenta e dois minutos:

- Bom dia, já se pode almoçar?
- Ali no restaurante em frente ainda não pode almoçar, mas aqui sim.
- E que tem hoje que se coma?
- Garantimos a efectiva confecção de diversos alimentos, de forma a poder satisfazer as suas mais exigentes necessidades alimentares.
- E o que tem pronto a sair?
- Providenciamos uma vasta selecção de pratos tendo em vista vários regimes alimentares.
- Sim, mas diga-me alguns…
- Providenciaremos não apenas alguns e faremos um esforço para acompanhar os seus pedidos, seja qual for o prato que queira.
- E que pratos tem?
- As nossas propostas são ambiciosas, mas realistas.
- Por exemplo?
- Acompanhamos com especial atenção os PME, os pequenos e médios estômagos. Os micro e PME portugueses são parte essencial da sustentação dos sectores mais modernos e dinâmicos da gastronomia.
- Não é o meu caso, eu gosto de comer bem, em quantidade.
- Privilegiamos não só a quantidade, mas também a qualidade, tendo para isso feito um programa de modernização de toda a cozinha.
- Ok, traga-me a lista…
- As nossas prioridades não estão centradas em listas mas sim no reforço de um serviço inovador…
- Desculpe, não estou a perceber, afinal tem ou não algo que se coma?
- Os nossos objectivos não se confinam à comida, garantimos também um apoio completo à bebida.
- Isto é que é uma gaita! Olhe, acha que devo comer aqui ou no restaurante do outro lado da rua?
- Reforçaremos os mecanismos para criar condições que permitam ajudá-lo a tomar a decisão mais conveniente nessa matéria. Já comparou os nossos pratos com os do restaurante concorrente?
- Ainda não. Que pratos têm aqui, afinal?
- Os nossos pratos renovam a ambição de garantir uma competitividade sustentável assegurada por uma transversalidade de funções consolidadas no quadro de uma vasta…
- Desculpe, já não aguento mais e estou cheio de fome. Traga-me um bife grelhado com legumes cozidos.
- E para beber?
- Uma cerveja preta.
- Os seus desejos são ordens. Iremos trabalhar afincadamente para satisfazer o seu pedido nos próximos quatro anos.

sábado, 5 de setembro de 2009

Arroz xau-xau

Fazendo jus ao nome deste blogue, coisa que talvez nunca o tenha feito, porque sempre tentei guarnecê-lo com outro tipo de receitas – aquelas que acabamos por digerir todos os dias, mas que não vão parar propriamente ao estômago mas a outras partes do nosso organismo, partes essas que nem qualquer um possui, ou desconhece possuir, caso mais frequente este último, ou não vivêssemos numa sociedade sofredora de letargia cerebral – hoje decidi finalmente acatar o espírito tasqueiro e, assim, tentar surpreendê-los com um prato cujas iguarias vão fazê-los transportar por uma viagem que bem pode começar, caso sofram de falsas expectativas, num belo arroz de grelos, e acabar, caso caiam na realidade, num daqueles pratos culinários todos pipis, mas que na prática não nos alimentam convenientemente, aqueles a que agora fica bem apelidar de “gourmet”. A ver vamos.

Se há coisa que os meus Pais me ensinaram, ou não fossem eles pessoas oriundas de famílias de fracos recursos, foi a de que devemos tentar gostar um bocadinho de tudo, pois nem sempre havia a possibilidade de comermos aquilo de que realmente gostávamos. Bem sei o porquê de nos tentarem incutir tais valores, pois eles eram de outros tempos – os tempos em que era necessário ter estômago para tudo e mais alguma coisa, pois, pensavam eles, era preferível comer algo a ter a barriga constantemente a dar horas!

Pois bem, meus amigos, para quem não me conhece, esta é a altura ideal para desistirem da leitura deste post e talvez passarem para um qualquer blogue que se dedique à trica politico-partidária… ou talvez não, fica ao vosso critério, mas depois não digam que não vos avisei e que sou sempre o mesmo destroça corações.

Para os que ficaram, aqui fica uma receita que me recuso cozinhar, muito menos digerir:

- Arroz “alfinetada”;
- Ovos debaixo dos braços q.b.;
- 120 g de pseudo-jornalistas, que mais não são do que paus mandados de um lobby qualquer;
- 250 g de carne de “aves de rapina”;
- 150 g de carne de porca política;
- 100 g de gente que não se importa de ser afiambrada, desde que os meios justifiquem os fins;
- Nozes dos dedos picadas, de tantos murros se dar na própria dignidade;
- Sal e pimenta ao gosto de cada um;
- Água à medida daquilo que se quer “alagar”;
- Salsa (ou outro tipo de dança, principalmente aquela, a de cadeiras).

Queridos e amados Pais, por muito que eu goste de vós, que gosto, bem o sabeis, prefiro alimentar-me de outras coisas, nomeadamente as que me façam crescer como pessoa, em detrimento daquelas que só servem para encher o band(a)ulho… ou então morro orgulhosamente à fome.

Beijos, abraços… e xau-xau!

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

24 - Operação Moelas (VI)



Parménides contemplava ainda, com mágoa, a garrafa de tinto que jazia quebrada no chão, quando Bauer lhe pegou pelo braço e literalmente o arrastou procurando um veículo que lhe permitisse não perder o rasto do atirador. Providencialmente, a solução surgiu estacionada junto ao quiosque do parque, um Aixam branco, também conhecido por “mata-velhos” ou “papa-reformas”, mas que para Bauer era o veículo ideal, potente porém discreto, audaz todavia seguro. Um vidro quebrado e o assunto resolveu-se.

O sol descia no horizonte quando o Aixam ultrapassou as fronteiras do bairro, levando no seu interior um Parménides angustiado com o pensamento em sua mãe que, àquela hora, tricotava sem parar uma nova camisola de lã para o seu filho, aguardando, sem noção do tempo, pela garrafa de tinto que não iria chegar a tempo do coelho à caçador. A angústia do jovem herói era adensada pelo facto de estar cada vez mais longe do seu habitat, aumentando o risco de se perder, ao contrário de Paulo Portas quando abandona a liderança do CDS-PP, que acaba sempre por encontrar o caminho de volta para o Largo do Caldas.
Subitamente, o Aixam estacou numa esquina. 500m mais à frente, a Piaggio estacionou junto de uns grandes armazéns. O sujeito olhou em redor, certificando-se que não era seguido e apressou-se a entrar no edifício por uma porta lateral. O telemóvel de Bauer tocou e ele pô-lo em alta-voz.

- Jack? - era a voz do inspector Agostinho – surgiu aqui uma coisa estranha na análise de ADN da baba do caracol, que revelou características de uma espécie em concreto, Gros-Gris, ou Helix Aspersa Maxima . Estes caracóis são importados de Marrocos e distribuídos no nosso país em exclusivo pela Caracolex, empresa registada em nome de Amin Al Moufada.
- Então, ouve-me isto, - respondeu Bauer – estamos nos armazéns da Caracolex, em perseguição de um suspeito que se escondeu no edifício e eu vou ter de lá entrar. Consegues arranjar-me a planta do edifício?
- Sim, - respondeu o inspector após uns instantes de silêncio - já a estou a ver no meu monitor.
- Manda-me para o meu i-phone!
- Não dá, Jack. Aqui na tasca só há ligação dial-up e o Silva paga a Internet ao minuto. O ficheiro tem mais de 50 Mb, isto leva uma eternidade...espera! Tive uma ideia, vou imprimir isto tudo e envio-te por estafeta. Até já.
Bauer olhou para o relógio. Não havia tempo a perder e a sua missão era recuperar a receita das moelas, custasse o que custasse, e enquanto não a concluísse com sucesso, corpo e mente não descansariam um segundo.
- Cobre-me! - disse Bauer para Parménides, enquanto corria para fora do carro, curvado, em direcção aos armazéns da Caracolex. Parménides achou estranho que Jack já estivesse com frio, mas como gostava de cumprir o que lhe pediam, principiou logo a tirar o seu casaco de lã merino para o emprestar a Bauer, pelo que estranhou que ele tivesse saído do carro para ir correr.
- Deve estar mesmo com frio! - pensou Parménides, que decidiu ir atrás do agente.

Os dois chegaram à porta lateral do armazém, Bauer olhou em volta e entrou sorrateiramente, logo seguido por Parménides Juvenal. À esquerda, havia uma escada de metal, da qual Bauer galgou os degraus dois a dois, alcançando um patamar que lhe dava a visão geral do espaço abaixo – filas e filas de caixotes perfurados, cobertos de rede, esperavam o momento da expedição. Aqui e ali, empilhadoras circulavam transportando volumes de um lado para outro.

* * *

Tendo acabado o seu último novelo de lã verde-alface, a mãe de Parménides olhou para o relógio e inquietou-se com o tardar da sua encomenda para o jantar. Esperou que o filho não tivesse tido outro azar como da vez em que ficara com a braguilha trilhada na boca de incêndio (uma longa história). Pelo sim, pelo não, resolveu ligar-lhe para o telemóvel.

* * *

Bauer reparou num grupo de indivíduos que conversavam numa zona mais isolada do complexo. Entre eles, reconheceu o atirador furtivo. Voltou-se para Parménides colocando o indicador sobre os lábios e caminhou pela galeria metálica por forma a ficar mais perto do grupo e ouvir o que diziam.
- الجامعة العربية Moufada انتظار معرفة انباء عن ذويهم على وجه الاستعجال ، وعدم السماح لمزيد من التأخير في الخطة . (* em português: Al Moufada aguardar notícias com urgência e não admitir mais atrasos no plano.)
- Saihd للراحة. وباختصار ، والمخدرات ، والبنادق ، والملاهي ، لن يكون أكثر من الفول السوداني لهذه الأعمال. (* Saihd poder descansar. Em breve, drogas, armas, casinos não serão mais que amendoins perante este negócio.)

Subitamente, Jack ouviu atrás de si uma melodia vagamente familiar.
“Abram alas para o Noddy! Noddy! Com a buzina a tocar...”
Virou-se e viu Parménides atrapalhado com o seu telemóvel, que tocava e vibrava intensamente, surgindo no visor, com intermitências, a palavra “mãe”. Antes que se pudessem aperceber, estavam ambos cercados, manietados e, após uma súbita dor de cabeça, começaram a notar que o mundo à sua volta ficava cada vez mais negro, até que as luzes se apagaram por completo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Mãe Natureza tem destas coisas


(Acabadinhos de serem "colhidos" do quintal do Silva! Lembra-me aquele "trava línguas" que aprendi em pequeno, quando me pediam para dizer, repetidas vezes e muito mas muito depressa, a frase: "Fui ao mar colhi cordões, vim do mar cordões colhi")

domingo, 2 de agosto de 2009

O que não lhe consegui esconder

Aprecio o ritual, como se o estivesse a ver pela primeira vez. Cada pormenor desperta em mim a curiosidade, uma ponte na imaginação infantil. Aquele pincel igualmente grande e pequeno, diferente dos que uso nas pinturas, e que costumo noutras alturas retirar da prateleira para brincar, neste momento encontra-se, uma vez mais, energicamente a criar uma espuma branca imensa no seu rosto. De seguida um objecto em forma de T passa com movimentos delicados e precisos, fazendo descobrir a pele por baixo da espuma.

Numa das idas à casa de banho reparo naquele objecto em forma de T, analiso-o tentando entender a sua função. Existe alguma sujidade retida na pequena ranhura superior, e num acto impensado deslizo o dedo indicador para a tentar retirar. Sinto dor, e de imediato surge uma gota enorme de sangue, que rapidamente é seguida de outra, e outra e a sequência torna-se rápida e interminável. Deixo cair o objecto no lavatório ensanguentado e fujo daquele local, daquela situação. Saio a correr para a sala e sinto a minha mãe vir atrás. “O que aconteceu?”, pergunta, enquanto procuro esconder a mão nas costas, sentindo o dedo quente, inchado, a latejar. “Nada!” respondo, tentando disfarçar o meu desconforto. Reparo nas manchas de pingos pelo chão e no olhar da minha mãe na minha direcção, mas sem ser para mim: para o que estaria no chão perto de mim.

Sinto-me aliviada pela sua presença, por ter percebido o que aconteceu. Porque ela tem sempre solução para o que desconheço.

sábado, 1 de agosto de 2009

O que nunca lhe contei

Dois pequenos buracos na parede despertam-me a curiosidade. O que estará do outro lado? Procuro em volta e descubro um pequeno ferro. A tentação é forte demais para conseguir resistir. Mesmo à medida! Exploro, faço girar o pequeno ferro dentro de um dos orifícios da parede, mas nada de novo. Tento então retirar o ferro mas este não cede. O pânico começa a gerar-se, recordo que a minha mãe está mesmo na sala ao lado, entretida com os seus arranjos de costura, penso que fiz algo de muito errado ao brincar com aqueles orifícios na parede, e num último impulso de medo puxo com toda a força o ferro encravado. Sinto um esticão, um formigar intenso a percorrer-me o corpo e desato num choro inconsolável, não sei se pelo susto do que acabo de sentir, se pelo medo da reprimenda da minha mãe. Ela num sobressalto corre para mim, abraça-me e procura saber porque choro. Coloca-me no seu colo, procurando que me acalme e lhe conte o que aconteceu. Eu não conto. Limito-me a soluçar e a esperar que ela não me castigue. Ela não insiste em querer saber o que aconteceu, apenas em que eu finalmente me acalme e pare de chorar. Consola-se por terminar mais uma choradeira sem motivo, eu consolo-me por ter escapado da reprimenda, e ainda ter tido direito a tanto mimo…

domingo, 19 de julho de 2009

24 - Operação Moelas (V)



A dúvida corroía o pensamento de Bauer, com a estranha sensação de que o grupo de meliantes antecipara os seus movimentos. Em passadas largas, atravessou o jardim no encalço dos 3 homens que, como que adivinhando-lhe as intenções, começaram a correr cada um para seu lado.

Entre os canteiros de buganvíleas e hortênsias, os pequenos lagos com peixes vermelhos e os talhões de arbustos, desenhava-se um jogo de gato e rato semelhante a tantos outros que Parménides tinha jogado no recreio da sua infância e que tantas memórias lhe traziam, pelo que decidiu, resguardando a integridade da garrafa de tinto que trazia debaixo do braço, entrar na corrida. Contudo, um jogo de apanhada no jardim apresenta outro género de obstáculos que não existem num pátio de escola, pelo que Parménides não contava que os seus suspensórios ficassem presos num galho de buxo, o que fez com que uma força invisível lhe arrepanhasse as cuecas e o atirasse para trás, com violência, indo embater num dos vilões que, acto contínuo, se desequilibrou contra um dos lagos de cimento, embatendo com a cabeça no rebordo e desfalecendo de imediato. A força elástica dos suspensórios de Parménides foi ainda suficiente para que a garrafa de tinto se soltasse dos seus bracitos inocentes, voando cerca de 10 metros e atingindo em cheio, por trás, Mohamed, que caiu na gravilha do jardim.

Na outra ponta do espaço verde, Bauer ganhava terreno sobre Achmed, revelando especial habilidade para tornear canteiros de hortênsias. Retesando os músculos, o ex-agente saltou em frente conseguindo jogar as mãos ao pescoço do fugitivo, derrubando-o com o seu peso. Num rápido e bem treinado movimento, prendeu-lhe as mãos atrás das costas e forçou o joelho contra o peito de Achmed.
- Fala, meu sacana, onde está a receita das moelas?
- Muito tarde, infiel. Receita muito longe por estafeta.
- Para quem é que trabalhas? - gritou-lhe Bauer – Quem é que atacou a tasca do Silva? Fala, sacana, ou nem sabes o que te faço.
- Achmed não saber que estás a falar. - O indivíduo sorriu levemente.
- Posso fazer o teu corpo doer de formas que tu nem imaginas!
- Apenas Alá pode punir quem não cumpre os seus desígnios.

Face à urgência da situação, Bauer reviu mentalmente numa fracção de segundo todas as técnicas de persuasão possíveis de aplicar naquele instante e decidiu-se por aquela referida nos manuais dos serviços secretos como “Depila Dor”. Desumana, mas eficaz.
Rasgando a camisa de Achmed, tirou de um dos bolsos do seu colete uma tira de cera depiladora a frio, que aplicou sobre o peito do adversário. Com um sorriso cínico, Bauer deu um puxão brusco no autocolante, que arrancou um punhado de pêlos peitorais e, ao mesmo tempo, um grito de horror das profundezas da alma de Achmed. Felizmente, pensou Jack, a convenção de Genebra estava fora de questão naquele momento.
- Ok, ok, eu contar tudo!... - disse Achmed com dificuldade, de voz embargada e olhos rasos de lágrimas – eu contar, eu contar...
- Desembucha de uma vez. Onde está a receita das moelas?
- A receita está...

Ouviu-se um som forte e seco e a revelação morreu-lhe a meio da garganta, coincidindo com a sua própria morte, já que do outro lado do parque, tinha vindo a certidão de óbito sob a forma de uma bala, saída da carabina ainda fumegante de um snipper que, ao ver Bauer a olhar para si, largou a arma e fugiu a toda a velocidade numa Piaggio vermelha.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Massa com brócolos e presunto

Prato frio, ideal para os calores do Verão, cheio de cores e sabores.

Cozer massa tipo penne (ou outra) em água e sal. Passar bem por água fria e deixar arrefecer.

Num recipiente fechado (ou coberto com película aderente), levar alguns minutos ao micro-ondas brócolos cortados em pedaços pequenos até ficarem cozidos, mas ainda um pouco duros. O tempo de cozedura depende da quantidade, por isso convém ir experimentando períodos curtos de cozedura. Deixar arrefecer.

Cortar em metades alguns tomates-cereja. Cortar queijo mozzarella em pedaços. Cortar presunto em pequenos pedaços.

Cortar finamente algumas folhas de mangericão. Fazer um molho juntando sal, pimenta, alho esmagado, vinagre balsâmico e azeite (para quatro pessoas, cerca de 2 colheres de sopa de vinagre e 4 de azeite).

Misturar todos os ingredientes.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Vertigens escondidas, risos ingénuos

A viagem está marcada para o dia seguinte, o que me deixa com uma ansiedade e um friozinho no estômago gostoso de sentir. É bom atravessar a fronteira, ir para um país estrangeiro, atravessarmos o rio e sentir que partimos para um mundo diferente. Apesar de, ao lá chegarmos, me parecer tudo tão igual ao que existe nesta margem onde nos encontramos. Talvez o cheiro do ar, das coisas, seja diferente. O que importa é o entusiasmo e as sensações que provocam cada nova ida a um país diferente do nosso.

A ponte que separa as duas margens, é estreita, de ferro e antiga, e estremece a cada passagem de um carro, obrigado a reduzir a velocidade, e a esperar a sua vez de avançar. Nas laterais exteriores da ponte existem umas estreitas passagens para peões, e são estas o motivo da minha angústia momentânea. Quando vamos de carro não me incomoda. Mas nunca ninguém me perguntou se a preferia atravessar a pé ou de carro. Embora a minha resposta a essa possível pergunta fosse a indiferença. Não pretenderia manifestar o meu medo de a atravessar a pé.

Avançamos numa caminhada lenta para a ponte, e já começo a sentir incómodo. Mal coloco o pé naquele chão feito de uma fina grade de ferro, que mostra claramente em baixo a água que corre no rio, sinto-me perder a noção de equilíbrio, como se me fosse afundar num abismo, como se o meu estômago saísse pela boca. Tento respirar fundo, o peito não corresponde, olho para cima, procuro ignorar a imagem que passa por baixo dos meus pés, apetece-me fechar os olhos, mas mantenho-os alerta para o trajecto na minha frente. Procuro rezas que me distraiam o pensamento, que me dêem força. Choro por dentro cada segundo que me parece não ter fim. E mantenho a postura de quem nada teme. Ninguém se apercebe do meu mal-estar. Morro de medo por dentro, e espero que ninguém dê por isso.

O alívio de chegar a chão firme é depressa ultrapassado pela sensação de estar num país diferente. Tento sentir este novo sítio, aperceber-me do que terá de diferente. Os passeios por onde caminhamos são feitos de placas de cimento em vez de calçada, acho piada, acho feio, mas encanta-me ser diferente, ser feio. Tudo me parece estranhamente diferente e igual. Reparo numa mosca que poisa. É diferente, colorida, é grande. Nunca tinha visto uma assim.

No regresso enfrento novamente a travessia da ponte, anseio sentir o medo, receio sentir o mal-estar, mas desta vez o trajecto parece-me mais curto, mais fácil, sinto que ganhei confiança, sinto que perdi algo também (embora não perceba bem porque me incomoda essa perda).

Descansamos num banco de jardim, quando vejo uma mosca igual à outra, grande, diferente, e entusiasmada com a descoberta exclamo: “Olhem, uma mosca estrangeira aqui!” Todos se riem, e eu sorrio. É bom quando consigo fazer os adultos rirem, mesmo sem entender de imediato como o consegui.

domingo, 5 de julho de 2009

24 - Operação Moelas (IV)



Junto à fonte central do jardim arqº Carrapatoso, dois indivíduos vestidos de negro aguardavam ansiosamente que o terceiro desligasse a chamada telefónica que estava a receber. Do autocarro 27 continuava a não haver sinal, mas após terminar a chamada, o sujeito do telefone fez perceber claramente que o grupo teria de sair dali com urgência.
- لا بد لنا من الفرار. كل رجل لنفسه ، نحن في مرحلة (*em português: Temos de fugir. Cada um por si, encontramo-nos no ponto alfa.)

* * *

Do outro lado da praceta, Jack Bauer encostado à esquina espiava a movimentação dos 3 homens suspeitos, enquanto ligava para a “tasca-force”.
- Aqui, Jack, escuto.
- ...desculpe, deve ser engano. - ouviu-se a voz do inspector do outro lado da linha – Eu não conheço nenhum Jack Escuto!
- Bolas, Agostinho! Sou eu, Jack. Escuto.
- Já lhe disse que deve ser engano, não conheço nenhum Jack Escuto e faça o favor de me desimpedir a linha, que preciso de falar com o meu amigo Jack Bauer.
- Eu sou o Bauer! Over. - rangeu Jack entredentes, amaldiçoando uma vez mais ter entrado naquela missão liderada por civis imbecis sem experiência de operações de campo, onde a vida e a morte se jogavam numa fracção de segundo.
- Bauer Over?! Elá, agora já é outro?? Ó diabo, temos aqui linhas cruzadas, queres ver?...
- Agostinho, ouve-me! Se queres que te volte a tirar o calcário da máquina, tens de colaborar.
- Jack!! Porque não disseste que eras tu?...Olha, já descobrimos a substância viscosa que estava no chão da tasca : baba de caracol!
- Baba?! - Bauer trocou olhares com Parménides, que por momentos pensou que o agente se estava a referir a algo que lhe caía dos cantos da boca, pelo que tratou de puxar o lenço monogramado que sua mãe lhe oferecera no 30º aniversário e com ele secou os lábios.
- Como diabo aparece um rasto de baba de caracol?
- ...por causa dos caracóis?...
- Bom. Seguimos o rasto que parece levar a um grupo de indivíduos estranhos que estão aqui no jardim...
- Os terroristas estão a ir-se embora! - interrompeu Parménides, apontando para o jardim.
- Não deves julgar ninguém pelo seu aspecto! - Bauer desligou a chamada – Se toda a gente pensasse assim, poderiam, por exemplo, olhar para ti e dizer que tens um pénis minúsculo.

Durante breves segundos, Parménides Juvenal não mexeu um único músculo facial, mas depois voltou a sublinhar, incisivo, directo e conciso, como era seu timbre habitual.
- Os terroristas estão a ir-se embora!

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Morrer

O ar é forte, quente, a paisagem ampla, nenhuma vegetação, apenas terra, de um amarelo que se prolonga quase pelo céu. Atrás de nós vai-se formando uma nuvem de pó que os cascos dos cavalos levantam a cada galope rápido, em fuga dos nossos perseguidores, os índios, eles também montados em cavalos, soltando ruidosos gritos de guerra. De repente sinto uma dor forte nas costas, apercebo-me que fui atingido por uma flecha e caio. O som ruidoso do momento é substituído por um silêncio absoluto, não me consigo mexer, não vejo nada, não me apercebo de qualquer movimento em meu redor. Interrogo-me se morri, se é esta a sensação de estar morto. Acho estranho, porque me sinto tão bem, tão relaxado, mas incomoda-me sentir-me imóvel. Estou de barriga para baixo, completamente colado ao chão, como se os meus músculos tivessem congelado naquela posição. No entanto, aos poucos, com grande dificuldade, vou abrindo os olhos, ofuscados por uma luz brilhante que apenas me deixa perceber que há um enorme borrão vermelho à minha frente. Parece-me que ouço algo. Sim, uma voz feminina repete com insistência qualquer coisa que não percebo, ainda que me soe familiar. A voz vai-se tornando mais nítida e então, finalmente compreendo:
- João acorda, despacha-te, olha que vais chegar atrasado à escola!

sábado, 27 de junho de 2009

Ressurreição

No final da década de 1880, o compositor Gustav Mahler (1860-1911) encontrava-se dividido entre a música sinfónica abstracta e a música com programa extramusical. Da primeira tendência eram exemplos maiores as obras dos grandes sinfonistas contemporâneos Johannes Brahms (1833-1897) e Anton Bruckner (1824-1896); da segunda salientavam-se os poemas sinfónicos de Franz Liszt (1811-1886) e Richard Strauss (1864-1949), bem como a música essencialmente teatral de Richard Wagner (1813-1883) . A resposta de Mahler foi híbrida — combinou a forma clássica da sinfonia com um inequívoco programa, daí resultando a Sinfonia n.º 2, conhecida por "Ressurreição".

Em 1888, Mahler tinha concluído uma grande obra orquestral num único andamento, a que começou por chamar "Sinfonia em Dó menor" mas depois mudou o nome para "Pompas Fúnebres". Este poema sinfónico, no entanto, acabaria por constituir o primeiro andamento da Segunda Sinfonia, concluída em 1894. Para além de vários indícios, os elementos extramusicais nesta sinfonia decorrem directamente do texto cantado (a obra inclui coro misto, um soprano e um contralto) e de uma "nota de apresentação" escrita em 1901 pelo próprio compositor. Assim, de forma clara, a sinfonia opõe a marcha fúnebre do primeiro andamento à ideia de ressurreição no quinto andamento.

A entrada do coro misto nos últimos minutos da obra dá início a uma das mais emocionantes sequências musicais da História da Música. Diz a "nota de apresentação" a este respeito: Ouve-se então o som suave de um coro de santos e hóspedes celestes: "Levantar-te de novo, sim, levantar-te de novo irás". Depois aparece Deus em toda a sua glória. (...) Um sentimento de amor avassalador imbui-nos da graça de saber e ser.

É sempre empolgante assistir a este final da sinfonia, mas há uma gravação com Leonard Bernstein a dirigir que é verdadeiramente impressionante. O clímax da obra acontece quando o coro canta duas vezes a frase "Sterben werd'ich, um zu leben!" — "Morrerei para poder viver" (no vídeo, a partir de 0:49) e a música encontra, finalmente, a tónica Mi bemol (aos 1:22). A partir daqui a imagem mostra o maestro em grande emoção a cantar os versos finais:

Aufersteh'n, ja aufersteh'n (Ressuscitar, sim, ressuscitar)
wirst du, mein Herz, in einem Nu! (Ressuscitarás, meu coração, num instante!)
Was du geschlagen zu Gott wird es dich tragen! (Aquilo que sofreste levar-te-á a Deus!)

TDS-TV… A única feita para você!

Eu sei, já lá vai muito tempo desde a primeira emissão, mas que querem? – Esta não é propriamente uma estação generalista, ok?! Vão-se habituando à ideia, pois a gente trabalha por carolice e NUNCA a troco de contrapartidas financeiras, ou até favores sexuais, uma vez que nem sequer temos pivots do sexo feminino com lábios carnudos, que mais parecem cópias fieis daqueles das bonecas insufláveis, os quais se adaptam a qualquer forma e tamanho (ouvi dizer).

No entanto, porque nestes últimos dias os tais generalistas passam a vida a falar da morte daquele rato de laboratório... sabeis?… aquele, o Mic…, o Mic…, o Mic…, bem, não é o “Mickey”, mas anda por ali perto e agora não me lembro ao certo do nome. Dizia eu que sentimos assim a necessidade de vos livrar desse martírio, razão porque aceleramos (a velocidade cruzeiro… daqueles do Douro) para a segunda emissão desse canal já considerado de culto (ou será do oculto?), a “TDS-TV”.

Ora façam o favor de apreciar:

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Boas razões para estudar

Estudar — e refiro-me a estudar mesmo e não a frequentar uma escola — estudar já esteve na moda aqui há uns largos anos. Depois virou uma seca do tamanho de um comboio. Porém, tudo indica que a rapaziada está agora a inverter a tendência e a voltar ao estudo das matérias escolares. Efectuei uma rápida investigação e conclui que razões não faltam para esta nova atitude. Aqui ficam as que mais me impressionaram:

Ser diferente – A vida está uma pasmaceira cada vez mais monótona. Fumar uns cigarros é uma tradição foleira do tempo do teu bisavô; emborcar uns shots é demasiado déjà-vu; ter "actividades" nos tempos livres é ridiculamente snob; frequentar o messenger, qualquer idiota o faz. Não haverá por aí nada de inovador que pouca gente faça? Há, sim — estudar.

Chatear os pais – Eis uma boa maneira, fácil e divertida, de chatear os velhos. Eles querem que tu estudes Economia, tu estudas Matemática. Eles querem que estudes Física, tu estudas Português. Só para chatear.

Chatear os profes – Se estudares a sério, facilmente ficarás a saber mais do que vários dos teus professores. Depois é só estares atento às calinadas que eles dão e chateias-lhes as monas, abafando-os com a tua erudição. Por exemplo, repreendes a professora de Física, informando-a que ela não deve dizer "duzentas gramas" mas sim "duzentos gramas", pois "grama é uma unidade de medida de massa que, gramaticalmente, é um substantivo do género masculino".

Deslumbrar o pessoal – As pitas adoram gajos cultos e eles ficam doidos com a inteligência delas. Para impressionar a sério, nada melhor do que largar espontaneamente no meio de uma conversa a frase final da página 32 de um manual qualquer. Ou o início da página 88. Aliás, qualquer página serve, por isso quantas mais páginas souberes, mais impressionante se torna a coisa. Um puto meu vizinho confidenciou-me que engatou a mais espectacular namorada que algum dia teve citando a página 190 do livro de Inglês:

1. I was _________ when my colleague told me he was going to Greece for two weeks.
2. John arrived completely ___________. I wasn't expecting him.

domingo, 21 de junho de 2009

Quibe assado

Bulgur são sementes de trigo parcialmente cozidas e esmagadas que se utilizam na confecção de diversos pratos tradicionais do Médio Oriente, especialmente o quibe. Quibe é uma espécie de croquete feito com carne picada misturada com bulgur. Tenho encontrado bulgur à venda no hipemercado Jumbo.

Há tempos vi e experimentei uma variante muito interessante, que consiste em levar a mistura a assar, em vez de fritar. Mas, como não aprecio muito o sabor da hortelã e achei que a canela não combinava bem, resolvi fazer as minhas próprias experiências. Fica bem com diferentes misturas de ervas aromáticas e fica ainda melhor com especiarias diversas. A minha versão preferida é a seguinte, receita para 4 ou 5 pessoas:

Colocar 250 g de bulgur numa tigela e misturar água a ferver até ficar com cerca de 1 cm de água acima do cereal. Tapar com um pano e reservar durante meia hora. Ao fim deste tempo o bulgur absorveu toda a água e aumentou de volume.

Misturar bem 1 cebola picada, 1 pimento verde picado, 1 malagueta picada, 1 ramo de salsa picada, 1 colher de chá de coentros em pó, meia colher de chá de cominhos, 2 cravinhos esmagados num almofariz, uma pitada de pimenta, uma pitada de noz moscada, 2 colheres de sopa de azeite e sal. Juntar depois 500 g de carne de vitela e o bulgur demolhado, misturando tudo muito bem com as mãos. Finalmente juntar 1 ovo.

Barrar uma assadeira com manteiga e espalhar a mistura, de forma que fique com cerca de 3 cm de altura. Com uma faca, fazer vários cortes paralelos e perpendiculares na mistura, em toda a sua altura (os cortes permitem depois empratar o quibe dividido em paralelepípedos). Assar no forno a 190º durante 35 minutos. Servir com salada de tomate.

sábado, 20 de junho de 2009

E depois do adeus

Tenho para mim que o melhor português é aquele que vive no seu país e não propriamente aquele que passou anos a trabalhar lá fora e que depois regressa, quando regressa, já entradote na idade e que apenas cá vem para fazer uso do bocado de terra que em tempos comprou no cemitério lá da aldeia (quer dizer, às vezes não só compram o bocado de terra, como também lá constroem uma "petite maison" com “fenêtres” e tudo).

Também há aqueles que vão lá para fora para estudar e que acabam por lá ficar a trabalhar, porque, segundo a maioria deles, em Portugal não lhes são facultados os meios para desenvolverem a profissão de que gostam.

Sobre estes últimos, vi há dias uma reportagem, salvo erro na “RTP”, onde foram entrevistados uma série de indivíduos portugueses a estudar e a trabalhar nos Estados Unidos, sendo que de entre todos chamou-me mais atenção uma menina que estava a fazer um doutoramento em CLARINETE.

Dizia tal menina que lá é que era – tudo pago, quando cá em Portugal nada disso conseguia!

Pois bem minha menina, do que você não saberá, é que enquanto a si facultam uma bolsa para tocar um instrumento, outros há no seu país de acolhimento que se vêem desgraçados para ter acesso a cuidados médicos. Para que tenha uma ideia, aqueles de quem falei já estão na casa dos CINQUENTA MILHÕES, enquanto que em Portugal, mesmo aquelas que, entre outras habilidades, tocam “pífaro de cacela”, têm acesso a esses serviços (se bem que com muitas falhas ainda), sem que para isso tenham de possuir um seguro de saúde.

Eu próprio já estive a um pequeníssimo passo de emigrar, não fossem uns acontecimentos anormais que me impediram de dar tal passo. Caso o tivesse feito, o meu intuito era unicamente o de amealhar umas coroas, que me permitissem regressar o quanto antes ao meu país e poder prosseguir com os meus projectos, quer pessoais/familiares, quer profissionais. Não fui e provavelmente já não irei, a não ser que entretanto vocês, os crânios (aqueles que até são condecorados pelo Sr. PR), inventem uma maquineta que retarde a velhice.

O que eu acho, é que é muito triste ver gente que para justificar o seu passo, tenham de denegrir a imagem do seu país de origem!

Para esses, não obstante a minha opinião, apenas lhes desejo que a sua consciência não se transforme num calvário e por isso até lhes dedico uma música que acaba assim - "E depois do amor/E depois de nós/O adeus/O ficarmos sós"… Se bem que toda a letra é sintomática do que um dia vos pode acontecer:

terça-feira, 16 de junho de 2009

24 - Operação Moelas (III)



Em redor do balcão da tasca estava montado o quartel-general da operação “moelas”, com o Silva envergando o seu avental de situações de crise (com várias nódoas de Borba e Vidigueira), Cátia Vanessa, a sua diligente colaboradora, o inspector Agostinho, Jack Bauer, o cobrador da água e, um pouco mais à margem, Parménides Juvenal, jovem de boas famílias, morador no bairro e que aguardava vez para ser aviado na encomenda de um litro de vinho tinto, que sua mãe usaria para o coelho à caçador do jantar.

- Potenciais suspeitos? - perguntou Bauer, enquanto vestia o seu colete de intervenção, cujos bolsos estavam recheados de sprays de gás lacrimogéneo, cartuchos de munições 6.35, granadas de defesa pessoal e folhas avulsas de papel higiénico dupla-face.
- Tenho ouvido uns rumores sobre a instalação de um fast-food aqui no bairro... - avançou o Silva ainda meio atarantado com tudo aquilo. - Talvez seja uma forma de demarcar território e assustar a concorrência.
- Não creio, - disse o inspector – isto é claramente um ataque político ao dr. Aníbal Silva. Não é segredo para ninguém que as moelas do Silva não são umas moelas normais e muito das hipóteses de reeleição do presidente da junta passam por este evento com as forças vivas do bairro e com a imprensa adversa que lhe faz oposição. Não me admiraria que houvesse aqui dedo político da oposição ao PITA, ou mesmo uma manobra suja da gazeta do bairro.
- Sr. Silva, - interrompeu Parménides – eu não queria incomodar, mas precisava do vinho para o coelho à caçador...
- Ó rapaz, vai ali ao fundo e tira do pipo, que eu agora não te posso atender.
Parménides Juvenal dirigiu-se aos bastidores da tasca, onde repousava um pipo de carrascão mais indigesto, geralmente reservado para os cozinhados. Por sinal, o mesmo local onde o Silva tinha sido atacado pelos assaltantes aquando do roubo da receita que impedia agora o presidencial evento.
- O sr. Silva tem de lavar mais vezes este chão, que até já se cola às solas dos sapatos.

Algum género de gatilho disparou no cérebro de Jack Bauer, que correu para a sala dos fundos, seguido pelos outros.
- Pegadas! - disse ele, apontando para o chão onde se viam os rastos dos assaltantes, conservados numa espécie de matéria viscosa que os mantinha perceptíveis, em direcção à porta das traseiras da tasca e, como em breve se perceberia, pela rua abaixo no caminho de fuga dos meliantes.
- Mas que coisa é esta? - perguntou o inspector Agostinho, sentindo o visco entre o polegar e o indicador.
- Não há tempo a perder. - resoluto, Bauer agarrou em Parménides Juvenal que estava mesmo a seu lado – Tu, vem comigo, preciso de apoio, vamos seguir esta pista antes que desapareça.
Os dois saíram da tasca a correr, Bauer empunhando a sua Sig Sauer P226, Parménides segurando a garrafa de tinto. No interior da tasca, iniciava funções a “tasca-force” da operação “Moelas”. O inspector Agostinho lambia várias amostras viscosas para identificar a estranha substância. O Silva pegava na esfregona para limpar os mosaicos. O cobrador da água continuava à espera que lhe indicassem onde era o contador.
Cátia Vanessa, ao telefone público de moedas que estava no balcão, marcava nervosamente um número.

sábado, 13 de junho de 2009

O Mergulho

Costumava ao acordar sentir a sensação de um mergulho. Alongava cada pedaço de mim num espreguiçar lento enquanto saboreava na imaginação o gosto de me lançar de cabeça na água, sentir-me leve, sentir-me envolvida pela água, pelo som náutico, como se aquele momento me permitisse nascer com ânimo renovado para aquele dia que começava.

Na piscina observava cada mergulho dos outros com alguma ansiedade de o vir a fazer também. Perguntava-me porque a monitora nunca nos tinha colocado em fila para mergulhar, tal como faziam com as crianças mais pequenas. E o quanto elas se divertiam…

Resolvi naquele dia colocar-me de pé na berma da piscina, imaginando-me a fazer os gestos que via outros fazerem, alinhando as mãos em frente ao peito, e lançar-me após o impulso que me faria desligar do chão, permitindo-me a sensação há tanto sonhada. A monitora reparou em mim e, adivinhando a minha intenção, colocou um sorriso enorme de incentivo para eu o fazer, acenando que sim com a cabeça. Sem pensar, atirei-me!

A leveza da água desaparece, sinto-me embater numa dureza estilhaçante. A água arde no corpo e sinto-me pesada. Não percebo… Ao regressar à tona da água olho a expressão frustrada da monitora, que sem grande entusiasmo pergunta se quero tentar de novo. Não o faço, disfarçando o meu próprio desapontamento.

Perdi o sonho, aquele que ao acordar me trazia uma envolvência única. Ganhei um novo ensinamento, refrescante ainda assim. Temos de perceber o quanto de realidade existe nos nossos sonhos, se os pretendermos concretizar.