quinta-feira, 29 de abril de 2010

No meu tempo é que era bom

Toda a gente sabe que no meu tempo é que era bom. O meu tempo, como também se sabe, é o tempo que já lá vai. As coisas que nesse tempo eram boas, hoje são más. E as coisas que nesse tempo eram más, hoje estão péssimas.

Toda a gente sabe que a escola no meu tempo era melhor do que hoje. A escola nunca esteve tão má como está agora. A miudagem conclui o ensino secundário analfabeta e ignorante. Nenhum aluno hoje lê livros porque a leitura é uma tarefa hercúlea, extenuante e inútil. Os alunos de hoje nem sequer sabem ler - apenas conseguem soletrar. E são incapazes de interpretar correctamente um texto porque desconhecem termos elementares como "opositor" e "sintético". Ah! No meu tempo!...

Com 10 anos já eu tinha devorado pilhas de Camilo Castelo Branco e de literatura de cordel francesa que a minha avó tinha numa estante. Lembro-me da pena que me fazia, em certas noites, ter de deixar o livro para dormir, empolgado que estava na leitura de tão fascinantes peripécias. De manhã, assim que acordava, a primeira coisa que fazia era voltar às fantásticas personagens que viviam nos livros. De Xavier de Montépin, por exemplo, recordo a insuportável perversidade da Alma Negra ou a redentora vingança, ao fim de vinte anos, de Joana Fortier, a padeira injustamente condenada por um crime que não cometeu. Aos 10 anos, só de Camilo, eu já tinha lido, entre outros títulos, Onde está a felicidade, Um homem de brios, Cenas da Foz, O esqueleto, A brasileira de Prazins, Carlota Ângela, Amor de Perdição, Amor de Salvação, Os brilhantes do brasileiro, Estrelas funestas, O bem e o mal, A bruxa do Monte Córdova, A queda de um anjo...

Apesar de toda esta leitura, apesar deste treino, um dia, já com 17 anos, tive uma dificuldade enorme em ler uma obra obrigatória na disciplina de Português. As personagens eram chatas, a história não cativava, o estilo do autor era, por vezes, irritantemente impenetrável, com uma grande densidade de palavras de significado obscuro. Para me ajudar na leitura, iniciei então, com esse livro, um hábito que mantive durante alguns anos, que era sublinhar os termos desconhecidos e, depois de consultar o dicionário, anotar em rodapé o respectivo significado.

Esta prática permite-me agora verificar que eu, aos 17 anos, apesar de ter sido um leitor incessante, desconhecia termos que hoje consideraria triviais e acessíveis a qualquer jovem da mesma idade. Isto exemplifica, de forma muito concreta, a diferença que há entre o passado e uma certa ideia que temos dele. Não fossem as anotações feitas no livro e eu hoje consideraria impossível que desconhecesse, nessa altura, termos tão correntes. Mas tais anotações provam o contrário.

Elaborei uma lista que me parece significativa de 25 destas palavras. A obra era Viagens na minha terra de Almeida Garrett.

apático
asceta
austero
castrar
cepticismo
decrépito
déspota
enguiço
erudito
execrável
fêvera
índole
lascivo
lorpa
miríade
plácida
promíscuo
puberdade
pugnar
pulha
querela
reminiscência
supérfluo
utopia
zurrapa

Toda a gente sabe que no nosso tempo é que era bom. Saudosismo e memória de requeijão dão nisto - uma incapacidade de avaliar correctamente as diferenças entre o passado e o presente. Eis uma coisa que a boa escola de antigamente não nos ensinou.

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