sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Equívocos na avaliação dos professores

Sempre houve leis e políticas mal feitas devido à distância intransponível que medeia entre os gabinetes ministeriais e a realidade do país. Mas o processo em curso de introdução de um novo sistema de avaliação de desempenho dos professores dos ensinos básico e secundário é um caso excepcional de incompetência e de ignorância, que fornecerá à História um case study exemplar.

Num programa televisivo na passada segunda-feira, a ministra da educação mostrou que, ao contrário daquilo que os professores dizem, tem uma atitude séria e honesta ao levar por diante uma ideia que considera interessante, correcta e apropriada. Atitudes destas, porém, qualquer adolescente tem, quando reivindica coisas reprováveis e, por isso, entra em conflito com os pais. Ora, no caso da senhora ministra, é fácil saber quem é o pai com anos de experiência responsável e quem é o adolescente idealista que só conhece da vida real aquilo que apenas sonhou.

À distância a coisa surge como um edifício com boa aparência e de linhas regulares. Mas quando nos preparamos para entrar nele verificamos que a porta está apenas pintada e não consiste na tradicional abertura por onde podemos passar. É altura de resolver o problema chamando uma escavadora e abrindo um rombo na parede no sítio onde está a pintura. Uma vez lá dentro, verificamos que as casas de banho têm quarenta metros quadrados, mas nos quartos de dormir mal cabe uma cama de solteiro. Temos seis salas de jantar, mas nenhuma cozinha. E por aí fora, é assim o edifício da avaliação dos professores que foi apresentado ao país. Repleto de erros, fragilidades, impossibilidades, equívocos, indefinições e incongruências, que revelam na perfeição como é que um bom sapateiro toca rabecão.

Dado que a maior parte das questões serão demasiado técnicas, ilustremos com uma de âmbito mais geral: a rubrica B3 da ficha de avaliação, que pretende que se avalie o professor na "utilização de recursos inovadores incluindo as tecnologias de informação e comunicação". Esta formulação encerra algumas dificuldades. A primeira é que só se consegue verificar se o professor utiliza recursos inovadores depois de se definir o que é um recurso inovador. Mas isso não foi feito. Usar um computador, por exemplo, pode ser inovador para um professor que ainda ontem não sabia distinguir um rato de um teclado, mas não será seguramente um recurso inovador para outro professor que já em 1986 dava aulas com uma televisão portátil e um Sinclair programado por si próprio em linguagem Basic.

Um outro exemplo, um fotocopiador será certamente um recurso inovador em muitas escolas do primeiro ciclo que ainda não dispõem desta máquina já tão vulgarizada. Indo um pouco mais longe, em muitas destas “escolas primárias” a falta de recursos é tão gritante, que os pais são convidados a contribuir no início do ano com dinheiro para adquirir umas resmas de papel A4. Será que o Estado, que se preocupa com a utilização de recursos inovadores, considera que o papel, em alguma escolas, é um recurso demasiado tradicional? Ou demasiado inovador?

Veja-se que, relativamente aos exemplos apresentados, o problema seria evitado se a formulação da rubrica avaliativa se preocupasse, não com a utilização dos recursos inovadores, mas sim com a utilização dos recursos disponíveis na escola, um pequeno pormenor que faz uma grande diferença. O professor só tem que se limitar a usar os recursos com que o Estado equipa as escolas, sejam ou não inovadores. Não só esta formulação seria muito mais clara e precisa, como passaria também a avaliar o nível de equipamento das escolas e chamaria a atenção para um facto normalmente omitido. É que, na esmagadora maioria dos casos, se os professores inovaram no uso das "tecnologias de informação e comunicação" nos últimos 20 anos, fizeram-no com computadores seus, nas suas casas, com electricidade, livros e outros recursos pagos por eles e não pela "entidade patronal" que deveria ter suportado esses gastos. Mas isso parece que ninguém está interessado em avaliar.

Continuando com a problemática dos recursos, passemos a um aspecto basilar. Será que para ter avaliação positiva nesta rubrica, um professor, que numa dada disciplina tem obtido bons resultados usando recursos tradicionais, deverá passar a experimentar recursos inovadores de efeito desconhecido? Não sei se estão a perceber. Tal como está formulada a rubrica, um professor que usa apenas quadro preto, papel e lápis será penalizado, seja qual for a disciplina leccionada, mesmo que os seus alunos obtenham aproveitamento brilhante, enquanto que um seu colega terá avaliação positiva só porque dá umas aulas com quadro interactivo, independentemente de se saber se isso contribuiu ou não para uma melhor aprendizagem dos alunos.

E isto leva-nos à questão final. O que está em causa não poderá nunca ser a mera utilização dos recursos ditos "inovadores" mas sim a eficácia dessa utilização. Vejamos um exemplo. Um professor utiliza o tradicional quadro preto para desenhar "tês" esquemáticos na disciplina de Contabilidade ou para mostrar um algoritmo de multiplicação. Outro professor usa um inovador quadro electrónico interactivo mas limita-se a fazer nele exactamente os mesmos rabiscos que o primeiro professor fez no quadro preto. Deverão ser avaliados de forma diferente? O Ministério da Educação diz que sim. E diz que sim aos demais disparates sobre recursos inovadores na rubrica B3 da ficha de avaliação. E diz que sim aos disparates de várias outras rubricas e textos legais. Obviamente que um ministério assim deve reprovar.

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