sábado, 19 de julho de 2008

É preciso ter lata!

Numa embalagem de tomate em pedaços que existe no mercado, pode ler-se a seguinte recomendação: "Consumir de preferência antes de ver data no fundo da lata". Ou seja, deve consumir-se primeiro e só depois se deve ver a data que existe no fundo da lata, assim em jeito das surpresas lúdicas de que o marketing é fértil. Como é evidente para qualquer pessoa, menos para quem completou a frase obrigatória por lei, o sentido do que ficou escrito é exactamente o contrário do pretendido.

Outras variantes não são melhores. Acho um especial fascínio no encantador "Consumir até ver fundo da embalagem", instrução que decerto tem em vista os consumidores de 6 anos de idade, os quais podem não se aperceber que, chegando ao fundo do recipiente, é escusado insistir pois não há mais.

Estes exemplos mostram a pouca atenção que se dá a muito do que por aí se escreve para que outros leiam. Parece existir uma regra única: se eu percebo, toda a gente tem de perceber. No entanto, seria muito fácil evitar o duplo sentido em ambas as frases. Bastava compô-las evitando o verbo "ver".

Estes exemplos ilustram também em parte o que acontece com a legislação portuguesa. Em geral, é escrita com muitas deficiências. Escrevem-se e publicam-se leis sem que haja o cuidado de testar previamente a sua compreensão junto dos cidadãos, que são, afinal, os principais visados e interessados na maior parte delas.

Mas a coisa, infelizmente, é ainda pior. É fácil provar que as leis são escritas de forma propositadamente complexa, enrodilhada, vaga e subjectiva, a fim de que o cidadão vulgar tropece nuns obstáculos e caia numas armadilhas, pois normalmente isso dá origem ao pagamento de umas coimas, sempre bem-vindas para financiar o eternamente deficitário Estado. Ou tenha de recorrer a juristas e a tribunais para interpretarem a lei, para virem logo outros juristas e outros tribunais interpretarem de maneira diferente, uma actividade verdadeiramente empolgante para quem a faz, embora muito perniciosa para a carteira do tal cidadão vulgar para quem era suposto a lei ter sido escrita.

A preocupação em complicar é tão grande que, quando uma lei estabiliza por algum tempo, logo alguém se lembra de a alterar e assim renovar a dificuldade da sua leitura e aplicação. O caso mais espectacular verifica-se quando as próprias alterações, de forma recursiva, geram por si sós, sem que seja alterada uma única palavra do texto, nova modificação complicativa. Foi o que aconteceu com a recente renumeração dos artigos do Código do IVA (pelo Decreto-Lei n.º 102/2008 , de 20 de Junho).

Exemplifiquemos algumas das consequências da renumeração de um articulado como este:

(1) Quem lida usualmente com a lei e a ela tem de se referir, conhece de cor o número de muitos artigos, o que facilita o seu trabalho. Esse conhecimento fica desactualizado num ápice, obrigando a uma reaprendizagem de uma coisa exactamente igual. Um professor, por exemplo, não pode continuara referir-se às regularizações do artigo 71.º, pois elas, ao fim de vinte anos nesse sítio, foram agora morar para o 78.º.

(2) Da mesma forma, inúmeras referências em textos técnicos ficaram desactualizadas. Um profissional ou um estudante que compulse a lei actual enquanto lê um artigo fundamental publicado em 2006, conclui que a bota não bate com a perdigota.

(3) Milhões de facturas e outros documentos comerciais pré-impressos, bem como ferramentas como carimbos e programas informáticos têm de ser destruídos, substituídos ou alterados, pois as referências à lei ficaram erradas.

Lê-se no preâmbulo do referido decreto-lei que a renumeração foi feita pelas "mesmas razões" já nele anteriormente enunciadas. Se formos à procura delas, concluímos que a renumeração foi feita para aprofundar a qualidade dos actos normativos, para simplificação, numa perspectiva de "legislar melhor", bem como permitir uma melhor "compreensão sistemática" da própria lei.

Desconfio que quem legisla em Portugal são os mesmos fulanos que fazem os rótulos para as latas de tomate em pedaços. Quase que apostava. Lata, pelo menos, não lhes falta.

3 Comments:

Pinto Madeira said...

as interpretações às leis dá-me um bonus perante qualquer funcionario público, seja ele das finanças, da seg-social, ou até das próprias autarquias..ou seja.. sendo eu uma nulidade em direito, ou até mesmo em qualquer coisa, desde que seja convincente que SEI o que estou a dizer e que é assim que esta escrito, eles ficam tão baralhadex que por vezes aceitam o que digo... excepto algumas ovelhas negras... mas a essas nada que um livro vermelho não resolva!!!

XN said...

De facto, as nossas leis são como as latas de conserva ... quando abro estas últimas, mesmo depois de ver a validade, fico com receio se aquilo não foi adulterado ... como pessoa do campo, prefiro comer produtos agora pomposamente chamados de biológicos. Nada como comer um pêssego directamente da árvore que o gerou, nem que depois apanhe uma bela duma diarreia por não me ter apercebido que aquilo ainda estava impregnado de químicos da última sulfatação ... mas é sempre melhor isso, do que apanhar uma diarreia cerebral e ficar com os neurónios todos atrofiados ... o chamado nó cego com que ficamos quando temos de analisar uma legislação qualquer que tem mais ramificações que a máfia napolitana ... agora que falo em máfia, desconfio que é para essa classe que a legislação é feita da forma que é!

Anônimo said...

É preciso é ter um bom abre latas, para digerir tanta lata.

Sem falar que os enlatados fazem mto mal!!!!!!!