quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Disparates no ensino do Português

Veio a lume mais um estudo que demonstra os péssimos resultados que os alunos portugueses apresentam em disciplinas como Matemática, Português, Física e Química. Boas notícias! Isto mostra que a miudagem nacional tem os olhos abertos e está a viver a vida segundo os melhores princípios.

A escola teima em querer que os adolescentes sejam peritos em matérias escabrosas como as que são estudadas nas citadas disciplinas, em vez de os encaminhar para assuntos muito mais interessantes e necessários para o equilíbrio físico, psíquico e cultural de qualquer pessoa normal. Refiro-me, por exemplo, a Sexo, Culinária, Condução Automóvel ou Direito da Família. É inacreditável que a escola insista em pretender que as assíntotas de uma hipérbole ou a lei de Stefan-Boltzmann são coisas muito mais úteis a qualquer cidadão moderno do que saber cozinhar e comer de forma saudável, ou utilizar de forma eficaz os vários métodos anticoncepcionais.

Vejamos de forma um pouco mais detalhada o que se passa em Português. O Ministério da Educação e os professores desta disciplina têm feito, com indiscutível sucesso, um esforçado e sistemático trabalho de afastamento da criançada por tudo o que é o gosto e a verdadeira função comunicacional da língua portuguesa. Várias têm sido as medidas com vista a este objectivo, mas saliento as três que me parecem mais bem sucedidas.

Em primeiro lugar, os programas e as práticas lectivas insistem em evitar que os alunos pratiquem exaustivamente a leitura, a escrita e a fala. Em vez disso, é obrigatório que eles se entretenham tempos infinitos em actividades prodigiosas como dividir sintacticamente frases do tipo "a minha prima Isaura, que é mais velha do que eu, tem um vestido amarelo com bolas verdes".

De entre as várias medidas pedagógicas dos responsáveis pelo Português, sobressai também a primorosa escolha, para leitura, de obras literárias intragáveis como A Sibila ou o Memorial do Convento. Estas obras podem despertar um interesse enorme a certas pessoas habituadas a ler, mas são totalmente inadequadas para jovens cuja experiência literária, até aos 15-16 anos, se tem limitado às legendas das séries televisivas, aos SMS dos colegas de turma e às frases sobre a minha prima Isaura.

Na escola devia-se começar por abordar textos muito mais evidentes, mas não menos ricos de significância, como reportagens do jornal A Bola ou os textos da Tasca do Silva. Depois sim, era altura de abordar obras maiores e mais complexas. Em vez disso, espera-se que os alunos, que mal sabem caminhar, tenham, de repente, bons resultados na maratona.

Um terceiro facto, este verdadeiramente criminoso, é o desaproveitar de belíssimas obras como, por exemplo, Os Maias, tornando-as objecto de leitura por obrigação e não por devoção. Antes de enfronhar os alunos neste magnífico texto queiroziano, há que lhes abrir as mentes para um conjunto de coisas fundamentais que nele são descritas. Mas não. A táctica tem sido "preparar os alunos" para que estes saibam responder a perguntas idiotas que saem nos exames, como, por exemplo, quantas vezes arrotou João da Ega no jantar do Hotel Central ou quais são as referências ao realismo e à monarquia que existem ao longo de todo o texto.

Para ajudar os estudantes neste complicado puzzle, existem uns livrinhos que resumem a obra em oito esquemas e doze páginas de texto, focando as principais manias dos fazedores de exames. Ler o resumo orientado para as perguntas do exame em vez de ler o que realmente Eça escreveu é, assim, prática corrente entre os nossos alunos. Chegados ao exame, quem melhor leu os resumos maior nota tem. E mais contribui positivamente para as estatísticas sobre o sucesso da escolaridade portuguesa. E para o melhor posicionamento da sua escola nos tão pomposos como anedóticos rankings de qualidade.

Claro que ler o resumo em vez da obra é assim como que, em vez de ir passear às Ilhas Gregas, folhear os catálogos da agência de viagens e ver uns vídeos no Youtube com uma cantora pop em Santorini; em vez de saborear uma requintada salada de vegetais, queijo e ervas aromáticas, optar pela leitura da receita devidamente ilustrada com uma esplêndida fotografia de um tomate maduro. Mas, claro está, para quem manda no ensino e para que idolatra os rankings, isso são meros preciosismos.

Eu podia continuar a enunciar os restantes disparates do ensino do Português nas nossas escolas, mas lembrei-me agora que o leitor, a acreditar nas estatísticas, foi provavelmente um deficiente aluno nessa disciplina e não deve ter percebido patavina daquilo que eu escrevi até aqui. Por isso acho que não vale a pena eu escrever os restantes sessenta e quatro parágrafos sobre este tema. Vou antes fazer o jantar.

4 Comments:

Anônimo said...

Eu não conheço os meandros da educação como aqui foram descritos mas devo de confessar que fiquei espantado quando a minha filha de 14 anos me disse que um dos livros que vai ler este ano como matéria escolar é o 1984 do Geroge Orwell... !!!

Disse-lhe que não estou a ver como é que aquilo possa ser matéria para a disciplina de português ao que ela me retorquiu - "A professora é que sabe do que nós precisamos" !!!

Daaass, OK...

Koole said...

enquanto espero pelos 64 parágrafos, acho quevou aparecer para o jantar que o colega vai preparar....

As pistas que nos tem deixado deixam antever um cozinheiro de "mão-cheia"!!

Anônimo said...

Ao contrário do que se pratica agora, tiva a sorte de ter um professor de português que nos obrigou a ler "A cidade e as Serras" e de seguida o conto "Civilização" para nos mostrar como um autor pode partir de um conto para um romance. Como uma viagem ao longo de uma rua se transforma de fotografia em filme, descrevendo com rigor tudo e todos os que rodeiam o narrador.
Decididamente, abaixo a fotografia (em termos literários, claro!) e vivam os filmes.

Petrusednem said...

O ensino vai mal. A culpa é dos alunos, é dos professores e nunca é do ministério!!!
Na passada semana foi aprovado no orçamento de estado mais uma verdadeira medida para tapar olhos deste governo, no que a educação diz respeito - a prova de admissão à carreira de docente... julgam eles que será com estes requisitos e critérios descabidos que vão melhorar tudo e mais alguma coisa, do tipo quem teve o azar de nos últimos 5 anos não ter sido colocado / trabalhado pelo menos 2 anos, irá também ser sujeito ao tal exame queobriga à nota minima de 14!
Até poderá fazer algum sentido, a ideia até poderia não ser má de todo, se com isto o governo não pretendesse apenas reduzir a lista dos desmpregados, ou seja, apenas estatisticas ... pois muito provavelmente com este exame muitos não vão chegar nunca a ser docentes, empregados ou desempregados!
Quanto ao tema do post em concreto, o ministério é quem manda!!!
Eu dei os Maias, li-o todo e gostei, dei também as viagens na minha terra que já mais "complicado" ... mas já na altura muita gente comprava e lia os tais resumos!