sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O que a vida mostra e o que ela esconde

De vez em quando vem-me à memória uma revista que a minha mãe comprava quando eu tinha os meus dez anos que continha duas colaborações semanais que eu gostava de ler "A Dona Licas" figura típica da "codrilheira" do bairro sempre a meter-se na vida dos vizinhos e "O que a vida mostra e o que ela esconde". O pessoal que já tem meio século sabe de certeza o nome da revista, utilizada para manter as mulheres como boas donas de casa, boas esposas e irrepreensíveis mães. Era a Crónica Feminina.

Mas isto tudo veio à tona porque na nossa vida surgem sempre situações em que o que estamos a ver e a sentir não é a realidade e temos atitudes de acordo com o que pensamos e sem o sabermos estamos a fazê-lo erradamente.

Pouco depois do 25 de Abril de 2004, estava eu a cumprir o serviço militar obrigatório no GDACI (Grupo de Detecção, Alerta e Conduta da Intercepção), unidade da Força Aérea Portuguesa em Monsanto, junto à cadeia agora tribunal, quando, numa noite em que estava de serviço, o November India N não respondeu ao November Foxtrote. Em linguagem civil, isto quer dizer que o sacana do sentinela N não respondeu à chamada por rádio do graduado de serviço. Acontece que nessa altura a antena emissora da RTP tinha protecção militar por parte do GDACI que ficava próximo, e foi mesmo este sentinela que não respondeu à chamada. De imediato chamei o condutor de dia para me levar ao local para averiguar o que se estaria a passar, pois a entrada para a antena era feita por uma estrada que contornava o quartel e ainda longe do mesmo.

Chegado junto ao portão deparei com um letreiro, penso que em latão (que até há bem pouco tempo ainda lá estava) com uma cabeça de cão gravada e a inscrição "Cuidado com o cão". Antes de abrir o portão, olhei e lá bem ao fundo estava um pastor alemão, olhando para mim. Já me estava a imaginar com os braços feitos em pasta de fígado e como medida preventiva tirei a walter (se fosse o Malcolm era de certeza a HK21!) do coldre, puxei a culatra atrás e de novo para a sua posição, ficando a arma pronta a defender este vosso amigo do ataque daquela besta que, à noite e somando o aviso, parecia mais um Tiranossaurus Rex.

Abri o portão e avancei com os braços esticados e levantados à altura do queixo, segurando a arma com a duas mãos e fitando a besta, olhos nos olhos tentando antever o momento em que me iria atacar. A fera traiçoeiramente deveria estar à espera de uma falha minha e mantinha-se deitada, fitando-me de forma hostil. Sempre sem deixar de olhar para ele cheguei junto da porta e mesmo nesse momento preferi não desviar o olhar para procurar a campainha e de costas para a porta bati violentamente por diversas vezes com o salto do sapato.

Não tardou muito apareceu alguém da RTP e perguntei de imediato (sem virar a cara) o que se passava com o sentinela. Antes mesmo de me responder, o homem perguntou porque estava de costas, ao que retorqui, por causa do cão.

Nesse momento ele apercebeu-se do terror que estaria estampado na minha cara e da walter nas minha mãos. Sorrindo abertamente disse:
- Não faz mal, é muito manso.

2 Comments:

Anônimo said...

O Nestinho, também conhecia um pastor Alemão muito mansinho que, até lhe dava abraços, dizia ele. Mas um dia, o Nestinho apareceu todo retraçado por esse amigalhaço dos abraços, é que nesse dia, segundo o Nestinho, o cão começou a rir-se para ele e aí vai disto.

EB said...

Eu que continuo a ter horror a cães e já fui mordido por três vezes ao longo da vida (e refiro-me apenas à espécie dos verdadeiros canídeos) posso, como verdadeiro especialista na matéria, revelar uma coisa que não é do conhecimento da generalidade das pessoas. A maior parte dos cães são inofensivos e não fazem mal a uma mosca, como atestam, por norma, os próprios donos. O problema é que os próprios animais não sabem disso.